Opinião
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As incertas de Heisenberg: um diálogo

Encontros e desencontros entre ciência, cultura e linguagem

 

O chamado princípio da incerteza de Heisenberg é um dos aspectos da física quântica que mais desfrutou de popularidade cultural ao longo de quase um século. Neste texto, comentamos seu significado e suas limitações por meio de um diálogo entre um físico e um artista, partindo de uma amostra das interpretações abusivas que esse tema tem suscitado — tanto na filosofia, da epistemologia à metafísica, quanto na política, na economia, na estética e em outros campos. Em seguida, examinamos as razões da confusão que ainda hoje cerca esse princípio e discutimos as incertezas terminológicas que o acompanham. Por fim, defendemos que essas “desigualdades de Heisenberg”, como foram mais sobriamente renomeadas, não apenas não devem ser interpretadas como uma limitação ao conhecimento científico, mas, quando corretamente compreendidas, abrem caminhos específicos para a compreensão da física quântica.

 

A, um artista, conversa aqui com seu amigo F, um físico.

 

A — Você sabe o quanto sou curioso sobre a teoria quântica — e o quanto nossas inúmeras conversas ainda não me satisfizeram. Hoje, encontrei uma citação numa antiga revista de arte que me fez querer voltar ao tema. Ela sugere que uma das ideias mais famosas da sua área não se aplica apenas ao mundo microscópico da física, mas teria também implicações no campo da estética. Aqui está: “Quando o autor americano Michael Crichton estuda o pintor Jasper Johns, ele faz referência ao ‘Princípio da Incerteza’ de Werner Heisenberg. Em 1927, Heisenberg descobriu que era impossível medir, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição de uma partícula atômica (…). Em nível filosófico, a constatação de que certos aspectos do mundo físico não podiam ser conhecidos — que se tratava de um dilema insolúvel — foi um choque. A ambiguidade das obras de Jasper Johns pertence a essa corrente de pensamento.”[1] Eu não entendo a relação entre as ambiguidades da obra de Johns e as incertezas de Heisenberg, mas confesso que achei a sugestão estimulante. Talvez você possa me explicar?

F — Certamente não posso, porque me parece um completo disparate. Na verdade, eu poderia lhe apresentar um caminhão cheio de citações assim, que há um século tentam aplicar o que se chama erroneamente de Princípio da Incerteza a todos os campos: da sociologia à metafísica, da economia à política. Veja este exemplo: “Um átomo é ‘livre’ dentro dos limites do princípio da incerteza de Heisenberg (…). Assim, quando uma mensagem de percepção extrassensorial, na forma de mindons, psítrons ou o que você quiser chamar, toca um neurônio em equilíbrio instável, ela atua no nível da incerteza quântica e pode, por assim dizer, operar milagres.” [2] Se eu tivesse que escolher, preferiria a provocação de Dalí: “E eu, que sou o paroxista furioso da precisão imperialista, não encontro nada no mundo tão doce, agradável, repousante e até gracioso quanto a ironia transcendental implícita no princípio da incerteza de Heisenberg.”[3] Mas, em todos esses casos, trata-se apenas de um abuso da linguagem, explorando descaradamente a autoridade atribuída às ciências naturais.

A — Mas o fato é que foram os próprios físicos que introduziram esse termo, que, convenhamos, tem uma ambiguidade geral e se presta facilmente a esses abusos.

F — Reconheço sem reservas a culpa da minha profissão, que muitas vezes carece de cuidado e precisão em suas formulações, contentando-se com suas equações matemáticas e negligenciando as formulações linguísticas — que, entretanto, têm significado, bom ou ruim. Alguns físicos, no entanto, advertiram contra essa negligência desde os primórdios da teoria quântica: “O efeito imediato [do princípio da incerteza] será abrir as comportas para um verdadeiro dilúvio de licenças e devassidões intelectuais (…). [Ele se tornará] a base de uma orgia de racionalizações. [Nele encontrarão] a substância da alma, o princípio dos processos vitais, o agente da comunicação telepática. Alguns verão no fracasso da lei física de causa e efeito a solução para o velho problema do livre-arbítrio, enquanto, inversamente, os ateus verão nele a justificativa de sua concepção de um mundo governado pelo acaso.”[4]

A — Mas essa terminologia não é natural para os físicos? Afinal, lidar com as inevitáveis incertezas de qualquer medição faz parte do ofício e é uma das características da física experimental.

 

“Em todos esses casos, trata-se apenas de um abuso da linguagem, explorando descaradamente a autoridade atribuída às ciências naturais.”

 

F — Natural, talvez, mas não inocente. Pois você há de convir que falar de incerteza sobre a posição de um elétron implica necessariamente uma limitação do nosso conhecimento, sugerindo que não podemos saber exatamente onde ele está.

A — E não é esse o caso?

F — Em geral, sim, mas por razões muito mais profundas do que uma simples ignorância subjetiva ou uma limitação do nosso conhecimento, como sugere a formulação usual.

A — O que você quer dizer com isso?

F — Quero dizer que, se não sabemos onde o elétron está, é por uma excelente razão: ele simplesmente não está “em algum lugar”!

A — Você me surpreende. Não quer dizer que ele está em lugar nenhum! Ele está no espaço e, portanto, tem uma localização.

F — Não exatamente uma localização precisa. Ele tem espacialidade, sim, mas não uma localização pontual. Além disso, essa extensão espacial é contingente, varia de acordo com as circunstâncias que definem o estado do elétron.

A — Então deveríamos caracterizá-lo por sua extensão espacial?

F — Sim, desde que não concebamos essa extensão como fixa e imutável: não se trata de uma dimensão geométrica, mas do tamanho do domínio do espaço onde a presença física do elétron se manifesta — e que depende da situação específica em análise. Digamos que o elétron é “extensível”.

 

“Se não sabemos onde o elétron está, é por uma excelente razão: ele simplesmente não está ’em algum lugar’!”

 

A — Por que então não chamar esse domínio de “extensão” de localização?

F — Uma excelente sugestão.

A — E como vamos chamar o Princípio da Incerteza?

F — Antes de mais nada, vale dizer que não se trata de um princípio fundamental, mas de uma consequência do formalismo da teoria quântica. E, acima de tudo, não há necessidade de introduzir palavras problemáticas como “incerteza”, “indeterminação” ou mesmo “extensão” para entender do que se trata. Alguns físicos, inclusive dos mais importantes, tentaram esclarecer a questão, sem muito sucesso: “Essa forma de expressão [‘relações de incerteza’] corresponde à visão de que posição e momento têm, ‘na realidade’, valores definidos, mas não podem ser observados simultaneamente; é sob essa ótica que as relações de Heisenberg foram interpretadas como relações de incerteza. Mas isso só serviu para ocultar a inconsistência lógica resultante do uso de conceitos da mecânica clássica fora do seu campo de aplicação.”[5] Seria certamente mais simples e preciso falar em desigualdades de Heisenberg.

A — E como você formularia a mais conhecida dessas desigualdades, evitando interpretações errôneas e abusivas?

F — Eu diria algo como: “o produto da extensão espacial de um quanton pela largura de seu espectro de velocidades tem um limite inferior”.

A — Isso ainda soa um tanto esotérico, e bem menos atraente que as formulações tradicionais.

F — Então, com um pouco menos de precisão: “quanto mais estreita for a localização de um quanton, mais amplo será seu espectro de velocidades”. Talvez a formulação mais concisa ainda seja a bela expressão de Bachelard: “conter é agitar”.

A — Mas você poderia explicar isso melhor?

F — Vamos tentar. Um fenômeno quântico, em geral, não é caracterizado por um valor numérico bem definido para sua posição, mas por um espectro (uma pluralidade) desses valores. A largura desse espectro está correlacionada com a amplitude característica das velocidades do fenômeno. Essa correlação envolve a constante de Planck, o que indica claramente sua natureza quântica. Em outras palavras: quanto mais restrita for a localização de um quanton, mais amplo será seu espectro de velocidades. Assim, em vez de incertezas, é mais apropriado falar em extensões espectrais ou larguras dos valores físicos no contexto da teoria quântica.

 

“Longe de representar um limite ao nosso conhecimento […], as desigualdades de Heisenberg nos oferecem uma compreensão mais adequada dos objetos quânticos — nem que seja apenas por nos impedir de utilizar formulações clássicas inválidas.”

 

A — E qual a origem e a história dessa terminologia convencional?

F — Eu mesmo fiquei curioso e fui pesquisar suas fontes históricas, que se mostraram mais complexas do que um simples erro epistemológico.[6]

A — Conte-me.

F — No primeiro artigo em que Heisenberg introduziu, em 1927, o “princípio” que depois levaria seu nome — um artigo evidentemente escrito em alemão…

A — Por que “evidentemente”?

F — Sim, você tem razão; hoje em dia não parece tão evidente que, naquela época — nem tão distante — era perfeitamente possível publicar seu trabalho em sua própria língua.

A — Perdoe a interrupção, continue.

F — Nesse artigo inaugural, Heisenberg usa 30 vezes a palavra Ungenauigkeit, que pode ser traduzida como “imprecisão” ou “inexatidão”, termo usado em alemão para designar aquilo que chamamos tradicionalmente de “incertezas” (experimentais).

A — Mas não é exatamente isso que eu estava dizendo?

F — Espere, o interessante vem agora. No mesmo artigo, aparecem duas ocorrências de um novo termo nesse contexto: Unbestimmtheit.

A — Isso me lembra meus estudos de filosofia; é um termo que tem origem na tradição filosófica hegeliana. Em inglês, corresponderia a “indeterminacy” (em sentido mais abstrato, traduzido às vezes como “indeterminação”).

F — “Indeterminacy” foi de fato usado em inglês nos anos 1930, e seria muito preferível a “uncertainty”! Não é perfeito, porque a forma negativa da palavra ainda evoca facilmente uma ideia de falha ou limitação da teoria, o que perde o sentido real da questão; mas, no fim das contas, refere-se a uma caracterização eficaz: a posição do elétron, em geral, não está determinada — ao menos no sentido usual de uma determinação pontual.

A — Mas isso não remete também ao “indeterminismo” quântico?

F — Sim, infelizmente! Mas aí já é outra das confusões que comprometem bastante a saúde epistemológica da teoria quântica. Podemos falar disso depois, mas não é exatamente a mesma questão. De todo modo, a partir de 1929, prevaleceu o termo Unbestimmtheit, apesar de uma breve aparição, nos trabalhos de Heisenberg e também de Weyl, da palavra Unsicherheit, que significa “incerteza”.

A — E você conseguiu entender como, pelo menos em francês, acabou prevalecendo o termo incertitude?

F — Ao que tudo indica, a culpa é de uma adoção preguiçosa, em francês, de uma tradução relaxada feita primeiro para o inglês! Porque, em inglês, uncertainty rapidamente se tornou a norma, suplantando indeterminacy, e infelizmente impôs seu equivalente em muitas outras línguas. Curiosamente, o termo mais comum hoje em alemão para descrever essa localização indeterminada dos quantons é o adjetivo unscharf, que significa algo como “sem nitidez” ou, talvez melhor, “difuso”. Vale notar, contudo, que o italiano permaneceu fiel a indeterminazione.

A — Permita-me ser um pouco provocador. Porque, no fundo, por trás de toda essa disputa vocabular, o fato continua sendo que vocês não sabem onde está esse maldito elétron. Quer seja por nossas próprias limitações, como alguns ainda acreditam, quer — segundo o ponto de vista moderno, se estou entendendo bem — por culpa do próprio elétron, que não consegue se satisfazer com uma posição bem definida, o resultado me parece uma derrota do espírito científico, uma renúncia ao conhecimento.

F — Não concordo de forma alguma! Na verdade, vejo justamente o contrário. Me diga: quanto pesaram seus sonhos na noite passada?

A — Que pergunta mais absurda!

F — Concordo plenamente. Mas veja: só porque uma pergunta sem sentido não pode receber uma resposta inteligível, não quer dizer que nosso conhecimento seja limitado! Conhece o ditado: “pergunta tola, resposta tola”. É exatamente isso que acontece quando se força um elétron a admitir onde está exatamente. Na melhor das hipóteses, sob pressão, ele acaba respondendo: aqui, ou ali, ou acolá. A única diferença entre essa situação e minha pergunta provocativa sobre seus sonhos é que, no caso dos objetos materiais em nossa escala macroscópica, a reificação mental de suas propriedades chegou a tal ponto que temos enorme dificuldade em conceber a inadequação de ideias desenvolvidas em um certo domínio prático quando tentamos aplicá-las a uma realidade que pertence a um campo radicalmente novo.

A — Você me convenceria mais facilmente se, em vez de criticar as descrições negativas dos objetos quânticos, me mostrasse os efeitos positivos de suas novas caracterizações. Mas imagino que você vai se refugiar na tecnicalidade dos formalismos matemáticos da teoria quântica?

F — A tarefa é difícil, mas talvez não impossível. De todo modo, é um fato que as chamadas “incertezas”, quando reinterpretadas corretamente, são, na verdade, fontes de novas certezas sobre o mundo quântico. Longe de representar um limite ao nosso conhecimento, como tantas interpretações infundadas ainda sugerem, as desigualdades de Heisenberg nos oferecem uma compreensão mais adequada dos objetos quânticos — nem que seja apenas por nos impedir de utilizar formulações clássicas inválidas. Sem entrar nos detalhes do formalismo, podemos compreender, em um nível essencialmente heurístico, a fecundidade dos próprios conceitos quânticos.[7] Mas vamos deixar essa introdução à teoria quântica para o nosso próximo encontro, se não se importar.

 

Leia a versão original em inglês!


NOTAS
[1] Philippe Jodidio, « Jaspers John, la tradition repensée », Connaissance des Arts n° 314, 1978, F 66.
[2] Arthur Koestler, Impact of Science on Society n° 24 (« The Parasciences »), Unesco, 1974, F 281
[3] Salvador Dali, Diary of a Genius, Doubleday, 1965 (and more recent editions) ;
[4] Percy William Bridgman, « The New Vision of Science », Harper’s Magazine, n° 158, 1929, F 443.
[5] Vladimir Fock, « La physique quantique et les idéalisations classiques », Dialectica 19(3–4), 1965, 223–245.
[6] Jean-Marc Lévy-Leblond & Françoise Balibar, « When did the indeterminacy principle become the uncertainty principle? », American Journal of Physics 66, 279 (1998).
[7] Jean-Marc Lévy-Leblond & Françoise Balibar, Quantics. Rudiments, North-Holland, 1990.

Capa. O princípio da incerteza de Heisenberg atravessou quase um século de interpretações. Entre ciência, filosofia e cultura, sua popularidade gerou debates que vão da epistemologia à política, da economia à estética.
(Fonte: Reprodução)
Jean-Marc Lévy-Leblond

Jean-Marc Lévy-Leblond

Jean-Marc Lévy-Leblond é físico e ensaísta, professor emérito da Universidade de Nice e diretor da revista Alliage.
Jean-Marc Lévy-Leblond é físico e ensaísta, professor emérito da Universidade de Nice e diretor da revista Alliage.
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