C&C 2E25 - opinião - Cortes Quânticos Percepção, Mediação e Encantamento no Cinema e na Física - capa site

Cortes Quânticos

Percepção, mediação e encantamento no cinema e na física

 

No início do século XX, dois adventos transformaram radicalmente nossa percepção
da realidade: o cinema e a física quântica. Embora pertençam a domínios aparentemente distintos — arte e ciência — esses campos compartilham características relativas às historicidades e formas de representar e interpretar o mundo. Buscaremos mostrar como o estudo comparado dessas duas áreas pode iluminar compreensões mais ricas sobre ambas.

 

Gênese paralela: Tecnologia, percepção e mediação

Embora a maturação da indústria cinematográfica e da física quântica tenha ocorrido em meados do século XX, ambas emergiram de uma mesma conjuntura científica e tecnológica, marcada por avanços em óptica, eletricidade e processos industriais que criaram formas de ver e representar o mundo.

O cinema não surge sobre um terreno virgem e sem cultura,[[i]] pelo contrário: resulta da convergência de desenvolvimentos como a fotografia, estudos sobre movimento e práticas narrativas teatrais — um período conhecido como pré-cinema.[[ii]] Essa combinação de fatores tornou possível, mais tarde, as primeiras exibições públicas de filmes. Já a física quântica é resultado da tentativa de diversos cientistas de lidarem com problemas que a física clássica não conseguia explicar. Em ambos os casos, os precursores não previram o quão disruptivo cada empreendimento seria para cada campo do saber.

 

“Os precursores não previram o quão disruptivo cada empreendimento seria para cada campo do saber.”

 

Outro aspecto compartilhado por ambos se refere aos limites da percepção humana. No cinema, a ilusão de movimento contínuo decorre da limitação do sistema visual, que não distingue imagens exibidas acima de 24 quadros por segundo. Essa “falha”
biológica permite que sequências de fotogramas sejam percebidas como fluxo contínuo. De modo análogo, na física quântica, a dificuldade em perceber efeitos quânticos no cotidiano decorre de limitações de escala. O processo de decoerência explica por que sistemas macroscópicos parecem obedecer à física clássica: as superposições quânticas são “borradas” por interações com o ambiente.[[iii]] Como observa Barreto (2015),[[iv]] assim como nossos olhos não veem os fotogramas individuais do cinema, não percebemos os “saltos quânticos” em fenômenos como o movimento de um pêndulo. Isso ocorre porque, utilizando a equação proposta por Planck em 1900 para sistematizar o princípio da equipartição da energia, verifica-se que para um pêndulo que possui 10 centímetros de comprimento, os degraus de energia são extremamente pequenos (∼10⁻³³ J), isso é, são insignificantes em escala humana. Como, então, jogar luz naquilo que não é percebido por nossos sentidos, em nossas experiências cotidianas?

 

Mediação técnica e a construção da realidade

A necessidade de se utilizar instrumentos como condição para “tornar visível” o que é invisível aos sentidos humanos é outro elemento comum. No cinema, utilizam-se câmeras e projetores para os fotogramas serem exibidos em uma velocidade suficiente para transformar o que era discreto em contínuo, formatando a
ilusão de movimento em tela. Na física quântica, as propriedades, as propriedades dos objetos só podem ser analisadas a partir de sua interação com o aparato experimental. (Figura 1)


Figura 1. A física quântica analisa as propriedades dos objetos somente através da interação com o aparato experimental.
(Fonte: Unicamp. Reprodução)

 

Apesar da dependência tecnológica, nas duas áreas, o papel dos operadores — cientistas e cineastas — permanece crucial. Enquanto o cineasta utiliza a tecnologia com o objetivo final de estabelecer um diálogo com o público, o cientista emprega instrumentos para tornar tangíveis fenômenos intangíveis, permitindo sua análise mais profunda. Embora seus objetivos difiram, arte e ciência aqui representadas dependem fundamentalmente da interpretação e criatividade humana.

No cinema, a “realidade” filmada é sempre construída (enquadramento, cortes,
iluminação). Na quântica, também é possível estabelecer um raciocínio semelhante, a partir do princípio da complementariedade proposto por Bohr em 1927, que estabeleceu que o comportamento dos objetos quânticos (manifestando-se como onda ou partícula) estava indissociavelmente vinculado ao aparato experimental utilizado. Nessa visão, o observador deixava de ser um agente passivo para tornar-se parte constitutiva do fenômeno: sua escolha de medição determina qual aspecto da realidade quântica se manifestará. Essa dependência de mediação técnica e o papel dos observadores/construtores desafiam noções ingênuas de realismo.

 

Gramáticas da invisibilidade: Linguagens e rupturas

O desenvolvimento da mecânica quântica no início do século XX foi marcado por formulações complementares. Em 1925, Heisenberg propôs a mecânica matricial, descrevendo fenômenos quânticos com operadores não comutativos. Pouco antes, De Broglie sugerira que partículas como elétrons possuíam propriedades ondulatórias, e em 1926 Schrödinger desenvolveu a equação de onda, reinterpretada por Max Born como amplitude de probabilidade, estabelecendo o caráter estatístico da teoria. Em 1927, Heisenberg sintetizou essas ideias no princípio da incerteza, mostrando que variáveis conjugadas não podem ser determinadas simultaneamente com precisão absoluta.

 

“Como, então, jogar luz naquilo que não é percebido por nossos sentidos, em nossas experiências cotidianas?”

 

O debate avançou em 1935 com o paradoxo EPR (Einstein-Podolsky-Rosen), que questionava a completude da teoria quântica ao apontar correlações “fantasmagóricas” entre partículas emaranhadas. Essa crítica só seria superada em 1964, quando John Bell formulou seu teorema, demonstrando que qualquer teoria de variáveis ocultas locais produziria previsões incompatíveis com a mecânica quântica. A verificação experimental dos efeitos de Bell, realizada por Alain Aspect em 1982, reforçou a interpretação de Copenhague e descartou o realismo local.[[v][vi],[vii]]

O cinema também teve sua gramática desenvolvida paulatinamente. No primeiro cinema,[[viii]] entre o final do século XIX e o início do XX, prevaleciam registros experimentais sem linguagem própria. Posteriormente, movimentos como o Expressionismo, o Neorrealismo, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo expandiram as possibilidades narrativas e estéticas.

Um dos elementos estruturantes dessa linguagem foi o conceito de montagem, que pode ser compreendido como a construção do discurso fílmico pela articulação entre planos.[[ix]] A teoria da montagem soviética, desenvolvida nas décadas de 1920 e 1930, foi fundamental nesse processo. Lev Kulechov demonstrou, com o chamado Efeito Kulechov, como a ordem dos planos altera a percepção do espectador. Serguei Eisenstein propôs uma montagem dialética baseada no choque de imagens para provocar reflexão, enquanto Dziga Vertov via o cinema como reinterpretação ativa da realidade.[[x]]

Assim como o teorema de Bell enterrou o realismo local na quântica, a teoria da
montagem desmontou a ilusão da câmera como janela transparente para o mundo.
Ambos os campos ressignificaram causalidades clássicas: na quântica, pela não
localidade das partículas; no cinema, pela não linearidade da narrativa. Além disso, a
não comutatividade, central na mecânica quântica, também se manifesta no cinema: a sequência dos planos altera a estrutura e o sentido do filme..

 

Encantamento e letramento: Desafios contemporâneos

Diversos filmes exploram conceitos quânticos com abordagens distintas. Exemplos de produções desse tipo incluem obras como “Coerência” (2013), “Interestelar” (2014) e “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” (2022), vencedor do Oscar de melhor filme, todos tidos como obras de Ficção Científica, gênero marcado pela presença dominante de um novum — uma inovação cognitiva que, validada por uma lógica interna, introduz uma novidade imaginativa no universo do espectador/leitor.[[xi] Essa definição aplica-se perfeitamente à representação quântica no cinema. O novum, ou estranhamento, é usualmente dado por um elemento especulativo de interesse popular, como viagem no tempo e multiversos. Já a racionalidade que conecta o espectador com a narrativa, possibilitando sua identificação com ela, é dada pela fundamentação científica das bases da física. (Figura 2)

Figura 2A. Cartaz do filme Coerência.
Figura 2B. Cartaz do filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.
Imagem 3C. Cartaz do filme Interestelar.
(Fonte: Imdb, 2025)

 

Seja qual for o nível de fidelidade às ciências, filmes de ficção científica cativam amplas audiências. É cabível, portanto, a pergunta: por que atraem tanto? Diante da complexidade dessa discussão, acreditamos que, inicialmente, a quântica oferece um raro misto de assombro intelectual e possibilidade radical. Esses filmes exploram algo profundamente sedutor — a promessa de que a realidade é mais estranha, mais maleável e mais cheia de potencial do que nossos sentidos sugerem. O sucesso de audiência revela um desejo duplo: compreender o incompreensível e escapar dos limites do mundo tradicional, mesmo que através de metáforas imperfeitas. Outro aspecto a ser considerado é que cinema e física quântica compartilham outro elemento: ambos despertam o encantamento.

Celebrar o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas é também reconhecer que, entre equações e imagens, entre experimentos e narrativas, reside um impulso comum: o desejo humano de decifrar e “reencantar” a realidade. Contudo, nem todo encantamento é benéfico. Ao contrário, quando acrítico, possibilita a instrumentalização, tornando-se feitiço para fins questionáveis. Vemos isso, por exemplo, no chamado “misticismo quântico” (Pessoa Junior, 2011),[[xii]] em que conceitos como emaranhamento e superposição são esvaziados para justificar pseudociências, como terapias “quânticas” e teorias de pensamento positivo. O perigo reside na sedução do jargão científico distorcido: cria-se uma ilusão de
credibilidade que pode enganar até públicos escolarizados. Como alerta Pessoa Junior, o verdadeiro conhecimento quântico exige rigor matemático e experimental, não analogias simplistas. No cinema, a ausência de letramento midiático pode levar à
aceitação acrítica de versões distorcidas da realidade, moldando subjetividades e
percepções históricas. Em síntese, tanto o cinema quanto a física quântica mostram que o mundo é mais complexo do que nossos sentidos alcançam — mas também nos
alertam que “ver” sem compreender pode ser perigoso..

 

“A quântica oferece um raro misto de assombro intelectual e possibilidade radical.”

 

Assim, impõe-se o desafio de fortalecer o letramento científico e midiático. Em tempos de negacionismo científico, a aproximação entre física quântica e cinema pode se revelar uma estratégia pedagógica poderosa. O encantamento, então, deve ser cultivado não como um atalho para o obscurantismo, mas como um portal para a reflexão crítica.


Notas
[i] SADOUL, G. História do cinema mundial. São Paulo: Editora Livraria Martins, 1963. v. 1, 314p.
[ii] COSTA, F. C. Primeiro cinema. MASCARELLO, F (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Editora Papirus, 2006.
[iii] PESSOA JUNIOR, O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. FREIRE JUNIOR, O.; PESSOA JUNIOR, O.; BROMBERG, J. L (orgs.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais [online]. Campina Grande: EDUEPB; São Paulo: Livraria da Física, 2011.
[iii] PESSOA JUNIOR, O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. FREIRE JUNIOR, O.; PESSOA JUNIOR, O.; BROMBERG, J. L (orgs.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais [online]. Campina Grande: EDUEPB; São Paulo: Livraria da Física, 2011.
[iv] BARRETO, M. Cinema, ciência e percepção. RS (São Paulo), v. 1, p. 99-115, 2015.
[v] PESSOA JUNIOR, O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. FREIRE JUNIOR, O.; PESSOA JUNIOR, O.; BROMBERG, J. L (orgs.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais [online]. Campina Grande: EDUEPB; São Paulo: Livraria da Física, 2011.
[vi] RIBEIRO FILHO, A. Os quanta e a física moderna. ROCHA, F. J; PONCZK, R. I. L.; PINHO, S. T. R.; ANDRADE, R. F. S.; FREIRE JUNIOR, O.; RIBEIRO FILHO, A. (org). Origens e evolução das ideias da física. Salvador: EDUFBA, 2015. 
[vii] LIMA, N. Na busca do mundo quântico: por trás de toda equação tem uma história. Porto Alegre: Libélula Editorial, 2024
[viii] COSTA, F. C. Primeiro cinema. MASCARELLO, F (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: EditoraPapirus, 2006..
[ix] NOGUEIRA, L. Manuais de cinema III: planificação e montagem. Covilhã: Editora Labcom, 2010, 175 p.
[x] SARAIVA, L. Montagem soviética. MASCARELLO, F. (org.) História do Cinema Mundial. Campinas: Editora Papirus, 2006.
[xi] SUVIN, D. Positions and suppositions in Science Fiction. Londres: Macmillan, 1988.
[xii] PESSOA JUNIOR, O. O fenômeno cultural do misticismo quântico. FREIRE JUNIOR, O.; PESSOA JUNIOR, O.; BROMBERG, J. L (orgs.). Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais [online]. Campina Grande: EDUEPB; São Paulo: Livraria da Física, 2011.

Capa. No cinema, usam-se câmeras e projetores para transformar o que era discreto em contínuo, formatando a ilusão de movimento em tela. Na física quântica, as propriedades dos objetos só podem ser analisadas pela interação com o aparato experimental.
(Fonte: Freepik.com. Reprodução)
Renan Siqueira da Silva

Renan Siqueira da Silva

Renan Siqueira da Silva é doutor e mestre em Ensino e História das Ciências pela Universidade Federal do ABC e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo. Atualmente realiza pós-doutorado e atua como pesquisador colaborador da Universidade Federal do ABC.
Renan Siqueira da Silva é doutor e mestre em Ensino e História das Ciências pela Universidade Federal do ABC e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo. Atualmente realiza pós-doutorado e atua como pesquisador colaborador da Universidade Federal do ABC.
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