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Ciência quântica e exploração espacial

Nova geração de tecnologias quânticas deve ampliar conhecimento sobre o espaço

 

“Onde nenhum homem jamais esteve” é a frase que descreve a missão da nave Enterprise na série de ficção científica Star Trek (1966-1966). A aplicação das tecnologias quânticas tem o potencial de levar o conhecimento do homem sobre o espaço um pouco mais longe. “Isso que estamos fazendo agora, nos comunicando por meio de um aparelho de telefone celular, com tela de cristal líquido e com processadores em microchips, só é possível por causa das chamadas tecnologias quânticas de primeira geração. Elas moldam a forma como vivemos hoje”, afirma Marcelo Terra Cunha, professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “As tecnologias quânticas de segunda geração prometem muito mais”, complementa.

Os investimentos que têm sido feitos em projetos de ciência e de tecnologia quânticas corroboram a opinião do pesquisador da Unicamp. Segundo dados da Qureca, empresa que monitora projetos e iniciativas na área das ciências e tecnologias quânticas, em 2021, esse valor que era estimado em US$ 22,5 bilhões, passando para U$ 44,5 em 2025. “Estamos em uma corrida tecnológica, os investimentos em tecnologias quânticas aumentam a cada ano, em um ambiente onde convivem grandes empresas (Microsoft, Google, Amazon, IBM, etc.), iniciativas governamentais ou de conglomerados de países, como a União Europeia, além de uma quantidade imensa de startups desenvolvendo uma grande variedade de soluções que buscam utilizar as vantagens que a mecânica quântica pode prover a estas novas iniciativas tecnológicas”, ponderaram os pesquisadores do Grupo de Tecnologias Quânticas (QTech), da Universidade Federal do ABC (UFABC), Luciano Cruz, Hans Florez e Breno Marques.

Em um artigo de 2003 o pesquisador e professor irlandês-americano, Jonathan P. Dowling (1955-2020), conhecido por seu trabalho em tecnologia quânticas, juntamente com Gerard James Milburn, um físico australiano com pesquisas importantes sobre controle de feedback quântico, afirmaram: “Se a primeira revolução quântica nos deu novas regras que governam a realidade física, a segunda revolução vai usar essas regras no desenvolvimento de novas tecnologias”.

 

“Estamos em uma corrida tecnológica, os investimentos em tecnologias quânticas aumentam a cada ano.”

 

Conforme explicaram os pesquisadores do QTech, de fato, estamos vivendo um boom das tecnologias desenvolvidas a partir da primeira revolução quântica: transistores para computadores, manipulação de spins para caracterização de materiais que permitiu o aprimoramento de fármacos, luz laser para imagens de alta resolução, pinças ópticas para técnicas de manipulação de ADN e não menos importante, laser para comunicação global por fibra ótica. “Poderíamos dizer que a mecânica quântica teve um papel passivo no desenvolvimento desses sistemas”, afirmaram. No entanto, segundo os pesquisadores, a partir do final do século XX, muito desse desenvolvimento tecnológico permitiu realizar experimentos cada vez mais sofisticados, com um controle muito preciso de vários sistemas quânticos, novamente com potenciais aplicações tecnológicas em novos dispositivos. “Podemos dizer que aí começa a segunda revolução quântica”. Três áreas se destacam nesta nova geração de tecnologias baseadas em física quântica: computação, comunicação e sensores.

 

Os sentidos ultra precisos do universo

“Sensores quânticos” são dispositivos que aproveitam fenômenos como superposição – uma característica marcante da física quântica que se refere ao fato de uma partícula quântica poder existir em múltiplos estados simultaneamente – e o emaranhamento, que ocorre quando duas ou mais partículas quânticas se entrelaçam, tornando-se interdependentes, de maneira que a medida das propriedades de uma partícula afeta instantaneamente as propriedades das outra, independentemente da distância que as separa, que pode ser até mesmo de anos-luz. Partículas emaranhadas estão, por definição, superpostas e seu estado é definido a partir da observação. (Figura 1)


Figura 1. Sensor quântico desenvolvido pelo Exército dos EUA em 2020.
(Foto: Exército dos Estados Unidos. Reprodução)

 

“Hoje já temos sensores supercondutores e magnetômetros atômicos com altíssima precisão para campos magnéticos. Eles permitem medir, por exemplo, os sinais magnéticos emitidos pelas nossas neuronas, o que chamou atenção para aplicações em diagnóstico médico, mas também em indústria e caracterização de materiais. Temos relógios atômicos, uma referência de alta precisão, sem necessidade de calibração prévia, para controlar o atraso de relógios locais”, mencionaram os pesquisadores do QTech. “Além disso, nuvens de átomos resfriados por luz são usados em diferentes configurações para medir gravidade, aceleração e rotação, tendo aplicações em geolocalização sem GPS, em situações de explorações no subsolo ou em missões espaciais”, complementaram. Um dos projetos do QTech é justamente o desenvolvimento de sensores quânticos baseados em meios fotônicos neutros em temperatura ambiente.

Ainda segundo eles, as tecnologias quânticas na área de sensores estão focadas em medidas de grandezas físicas básicas – como temperatura, campo magnético, campo elétrico, etc., e em medidas de aceleração, gravidade, essas com aplicação direta nas indústrias aeronáuticas e aeroespaciais. “Muito do que tem sido desenvolvido hoje pode ser adaptado para uso no espaço. O maior desafio é adaptar esses experimentos grandes e complexos para formatos portáveis, mais compatíveis com sistemas de usuário, como dispositivos em uma escala de massa e tamanho adequados para transporte para o espaço”, salientam os pesquisadores da UFABC.

Outra linha de pesquisa que ganhou muita atenção nos últimos anos é a de detecção de ondas gravitacionais, uma forma de mapear o espaço sem a necessidade de detecção de luz vinda das estrelas, como ocorre na astronomia convencional. Essas iniciativas acontecem no Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser (LIGO, na sigla em inglês), capazes de detectar pequenas perturbações nos seus “braços” devido às ondas gravitacionais. Entretanto, segundo o grupo do GTech, na versão atual do experimento, os sinais são muito fracos, de forma só conseguimos detectar eventos muito massivos, como colisões de buracos negros. “Com o desenvolvimento de tecnologias quânticas, com mais altas sensitividades, poderíamos ampliar em muito o acesso às ondas gravitacionais de menor magnitude e, assim, ter mais uma ferramenta para ‘vermos’ aquilo que está no espaço e não emite luz, mas tem massa. Isso teria implicações diretas em nosso conhecimento sobre o espaço e poderia nos levar a novas considerações sobre futuras pesquisas espaciais”, apostam.

 

Segurança estratégica

Cerca de metade dos investimentos em tecnologias quânticas está concentrada na China. O país asiático tem feito avanços muito significativos na área de comunicações quânticas. Em particular, o grupo organizado pelo professor Jian-Wei Pan, da University of Science and Technology of China, estabeleceu uma rede quântica que excede os 4.600 km de distância, indo desde Xinglong (próximo a Pequim) até Shanghai, usando uma estrutura com nós confiáveis. A extensão da rede é importante porque a comunicação por satélites envolve grandes distâncias.

Lançado em 2016, o satélite Micius faz parte desta iniciativa. “O time chinês usou o primeiro satélite de comunicações quânticas da história para criar um link em espaço livre entre Xinglong e Nanshan, distantes por mais de 2.600 km. Um feito impressionante. Neste caso, o próprio satélite funciona como um nó confiável da rede”, explica Rafael Barros, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). (Figura 2)


Figura 2. Satélite Micius
(Divulgação)

 

Trata-se de um tipo de comunicação baseada nos fundamentos da teoria quântica para criar e distribuir chaves a distância, onde só parceiros legítimos têm acesso à chave, daí o termo nó confiável. “Um passo importante nesse sentido foi dado ainda na década de 1990, quando o polonês Artur Ekert, professor na Universidade de Oxford, criou o Protocolo E91, que utiliza emaranhamento quântico para estabelecer uma chave secreta entre duas partes”, lembrou Cunha.

E isso é fundamental quando falamos de protocolos de segurança de dados e, mais do que isso, estratégico quando se trata, por exemplo, de soberania nacional. Utilizada para proteger informações e dados, a criptografia convencional utiliza algoritmos matemáticos. Já a comunicação quântica se aproveita do fenômeno da superposição e do emaranhamento. Como o estado das partículas quânticas superpostas é definido pela sua observação, isto é, quando medimos a propriedade de uma partícula, esta função entra em colapso, fazendo com que a partícula adote um estado específico. “Daí que o fato de ‘tentar obter uma informação’ modifica o estado quântico que está sendo transmitida, viabilizando o rastreamento da tentativa de invasão”, explicaram Cruz, Florez e Marques. “Isto significa que, mesmo que o Micius em si fosse hackeado, invadido por um espião malicioso, a comunicação permaneceria segura”, complementa Rafael Barros.

 

“Muito do que tem sido desenvolvido hoje para pode ser adaptado para uso no espaço.”

 

Foi com este satélite que o grupo fez uma “chamada quântica” de vídeo com um dos ganhadores do prêmio Nobel de Física de 2022, o professor Anton Zeilinger, que estava na Áustria! “Mais recentemente, o mesmo grupo conseguiu implementar um canal de comunicação quântica ainda mais longo, de 12.900 km, entre a China e a África do Sul. Neste caso, o time usou um microssatélite, com carga útil (payload) de apenas 23 kg”, contou Rafael Barros. Este trabalho foi publicado em março deste ano na revista Nature.

 

C&T quântica no Brasil

Além da China, os Estados Unidos também se destacam nos investimentos e projetos em ciência quântica, especialmente na área de computação. Em fevereiro deste ano, durante a Cúpula Mundial de Governos, que aconteceu em Dubai, o CEO da Google, Sundar Pichai, afirmou que o desenvolvimento de computadores quânticos operacionais deve levar entre cinco e 10 anos. Em dezembro de 2024, a empresa anunciou um novo chip quântico capaz de fazer em meros cinco minutos o que um supercomputador levaria dez septilhões de anos para fazer!

E como o Brasil se situa neste cenário? Na opinião de Rafael Barros, o país vive um momento promissor que se traduz no aumento do número de pesquisadores na área e no volume de investimentos. “Apesar de estarmos atrasados com relação às potências mundiais, recentemente muitos investimentos têm sido feitos no Brasil. Um exemplo é a fundação do Centro de Competência EMBRAPII CIMATEC em Tecnologias Quânticas (QuIIN), com investimento inicial da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) de US$ 60 milhões. Há investimentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que permitiram o início de redes quânticas no Rio de Janeiro e em Recife”, lembrou o pesquisador da USP.

 

“Apesar de estarmos atrasados com relação a potências mundiais, recentemente muitos investimentos têm sido feitos no Brasil.”

 

Em dezembro do ano passado, a Fapesp lançou o Programa Fapesp em Tecnologias Quânticas (QuTIa ou Quantun Technologies Initiative). Luciano Barros (USP) e Hans Florez (UFABC), que concederam entrevistas para esta reportagem, estão entre os pesquisadores contemplados com recursos do QUTIa, que chegam a R$ 31 milhões durante um período inicial de cinco anos. Em entrevista para a Agência Fapesp, Florez explicou que ele e seus colegas do QTech pretendem desenvolver o primeiro magnetômetro atômico do país para melhorar a leitura de um tipo de fonte de luz quântica. “Isso tem aplicações em diferentes áreas, como a da saúde, para o estudo da função cerebral, mas também para detecção de objetos metálicos, de defeitos de fabricação de baterias sem uso de raios-X e, mais recentemente, em comunicação, por meio do uso de sensores magnéticos”, afirmou.

A pesquisa de Luciano Barros se concentra na óptica quântica com luz estruturada, isto é, na codificação e leitura de informação quântica usando as formas que a luz tem no tempo, espaço e polarização. “Estou utilizando o financiamento para montar um novo laboratório na USP com o objetivo de estabelecer uma nova rede quântica no estado de São Paulo”, conta Luciano Barros. “Se o volume de financiamento na área de tecnologias quânticas e na pesquisa permanecer consistente, acredito ser uma questão de tempo até começarmos a ter uma indústria de tecnologias quânticas no Brasil, bem como uma base científica muito sólida e preparada para dirigir a inovação na área”, finaliza.

 

Capa. A nova geração de tecnologias quânticas deve contribuir para a ampliação do conhecimento sobre o espaço.
(Fonte. NASA. Reprodução)
Patricia Mariuzzo

Patricia Mariuzzo

Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
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