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O poder da informação quântica

Promessas, limites e aplicações reais da fusão entre computação quântica e machine learning

 

Imagine um computador capaz de resolver em segundos problemas que levariam milhares de anos para serem solucionados pelos computadores mais avançados da atualidade. Esse é o tipo de promessa que a computação quântica carrega — e que tem despertado entusiasmo em cientistas, empresas e governos ao redor do mundo. Baseada em princípios da mecânica quântica como superposição e entrelaçamento, essa tecnologia não somente amplia as fronteiras do processamento de informações, mas também inaugura uma nova forma de pensar os limites do que é possível computar. Em vez de trabalhar com bits clássicos (0 ou 1), os computadores quânticos usam qubits, que podem representar 0 e 1 ao mesmo tempo. Isso permite realizar cálculos exponencialmente mais eficientes em tarefas específicas, como criptografia, simulações de sistemas complexos e resolução de certos problemas matemáticos.

“Um algoritmo quântico envolve a inicialização dos estados, manipulações sucessivas e uma configuração final que permita a leitura da saída desejada”, explica Luiz Fernando Bittencourt, professor do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ainda assim, por serem baseados em probabilidades, os cálculos precisam ser repetidos diversas vezes para alcançar resultados confiáveis.

Paralelamente ao desenvolvimento da computação quântica, a inteligência artificial (IA) avança com sistemas que aprendem a partir de dados, por meio do aprendizado de máquina (machine learning), identificando padrões, fazendo previsões e automatizando processos. Mas agora, um novo horizonte começa a se formar: a inteligência artificial quântica (IAQ), também chamada de quantum machine learning (QML). Trata-se de uma área que busca aplicar algoritmos quânticos ao aprendizado de máquina, ampliando exponencialmente as possibilidades de análise. “Quando levamos os dados para um computador quântico, expandimos exponencialmente o espaço em que eles se encontram”, explica Samuraí Brito, Head de Pesquisa em Quantum e gerente de Ciência de Dados do Instituto de Ciência e Tecnologia Itaú. Esse aumento pode revelar padrões invisíveis aos modelos clássicos — com aplicações potenciais em áreas como detecção de fraudes e previsão de palavras. Entre os métodos promissores do QML estão os quantum kernels, que projetam dados em espaços de maior dimensão, e as quantum neural networks (QNNs), redes neurais simuladas com qubits e portas quânticas.

 

IA e computação quântica: convergência estratégica

A combinação entre IA e computação quântica vem ganhando força como uma aliança estratégica de transformação digital. Embora avancem em ritmos diferentes, essa convergência tem potencial para acelerar descobertas e impactar setores como saúde, energia, finanças e ciência. A relação é simbiótica: a IA pode otimizar o controle de sistemas quânticos e desenvolver algoritmos mais eficientes, enquanto a computação quântica pode acelerar o treinamento de modelos de IA. “O principal impacto seria a aceleração do treinamento”, reforça Samuraí Brito. Além disso, modelos generativos como as large language models (LLMs) podem ser treinados para compreender fenômenos quânticos e sugerir novas abordagens. “Vejo a IA como um acelerador da descoberta de novos algoritmos, e a computação quântica como um motor para treinar modelos mais rápidos”, resume a pesquisadora.

 

“Hoje, o que conseguimos com computação quântica ainda está no campo da experimentação. A tecnologia não está pronta para uso produtivo.”

 

O impacto dessa convergência vai além da tecnologia. “Todas essas inovações são questões de soberania e segurança nacional. Vão criar uma nova configuração do mundo, com impactos geopolíticos e econômicos profundos”, alerta Frank Ned Santa Cruz de Oliveira, professor na Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, compreender a computação como um processo físico e a informação como uma forma de energia manipulada na matéria é essencial para captar o alcance revolucionário da computação quântica. “Trabalhar com física quântica gera um novo paradigma de computação, que muda como resolvemos problemas complexos, com muito mais velocidade”, afirma. No entanto, o entusiasmo precisa ser equilibrado com cautela. “A relação entre computação quântica e IA é muito promissora, mas temos mais perguntas do que respostas”, observa Franklin Marquezino, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no Instituto Alberto Luiz Coimbra (COPPE) e também no Campus Duque de Caxias. Para ele, áreas como a otimização combinatória podem ser impactadas, mas ainda há muito a ser investigado.

 

Mitos, promessas e aplicações reais

Frequentemente retratada como uma tecnologia quase mágica, a computação quântica ainda é cercada por mitos e mal-entendidos. Um dos equívocos mais comuns é a crença de que esses computadores “testam todas as soluções ao mesmo tempo”. Embora tentadora, essa ideia é enganosa. A computação quântica não é apenas uma versão mais rápida da computação clássica — ela propõe uma forma diferente de resolver problemas. Em tarefas específicas, como buscas em grandes bases de dados, o ganho pode ser significativo: uma busca em um milhão de registros, por exemplo, pode ser até 500 vezes mais rápida com um computador quântico. Mas isso não significa que eles serão mais eficientes em tudo.

Ainda é improvável que a computação quântica substitua os computadores tradicionais no curto prazo. Porém, ela pode viabilizar as primeiras aplicações práticas em áreas como IA e otimização, que exigem enorme poder computacional. “Treinar uma IA pode ser muito custoso em energia e tempo. Um computador quântico pleno poderia acelerar esse processo e reduzir custos”, afirma Gabriel Coutinho, professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A grande diferença, segundo ele, está na lógica: “Ampliamos além do verdadeiro e falso da lógica booleana para outros estados.” Essa nova abordagem pode redefinir o que entendemos por aprendizado.

Apesar dos avanços, os desafios ainda são significativos. “A lógica dos algoritmos clássicos precisa ser adaptada ao aprendizado quântico”, explica Luiz Fernando Bittencourt. Por isso, os modelos híbridos — que combinam processadores clássicos e quânticos — seguem predominando. “Computadores quânticos menores podem ser usados em etapas específicas”, acrescenta. “Enquanto não houver qubits suficientes, esse é o caminho.” Rubens Viana Ramos, professor do Departamento de Engenharia de Teleinformática da Universidade Federal do Ceará (UFC), concorda e faz um alerta: “Máquinas não pensam, elas calculam. O ‘aprendizado’ de uma IA são processos matemáticos de otimização — não consciência ou intuição.” Ele aponta três formas principais de integração entre IA e computação quântica: como aceleradora de algoritmos clássicos; por meio de algoritmos variacionais, que combinam ambos os tipos de processamento; e com algoritmos puramente quânticos — essa última sendo a mais desafiadora, pois exige converter dados clássicos em estados quânticos e interpretar saídas probabilísticas, sujeitas a ruídos. A professora Hilma Macedo de Vasconcelos, também do Departamento de Engenharia de Teleinformática da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que a inteligência artificial quântica está em estágio inicial. “Existem propostas teóricas de algoritmos quânticos para IA, mas ainda não há computadores capazes de executá-los com vantagem real sobre os clássicos”, afirma. Mesmo assim, destaca o dinamismo da área, que tem atraído universidades e empresas nos Estados Unidos, China, Japão, Europa, Índia e África do Sul.

 

“O potencial revolucionário da IA quântica pode tanto reduzir quanto ampliar as desigualdades tecnológicas. Hoje, o acesso a essa tecnologia é profundamente assimétrico, concentrado em potências econômicas e grandes corporações.”

 

Mesmo sem exemplos consolidados de uma IA quântica superando definitivamente as abordagens tradicionais, há otimismo. Aplicações em otimização logística, análise de grandes volumes de dados e simulação de sistemas complexos já estão em curso. Frank Oliveira reforça: “Nós temos problemas, por exemplo, de otimização, de logística, de novos fármacos, problemas reais que a IA quântica vai trazer vantagem em relação a abordagens tradicionais.” Para ele, o diferencial está na capacidade da computação quântica de lidar com múltiplos estados simultaneamente, o que permite ganhos não lineares — e, em alguns casos, exponenciais.

 

A corrida da computação quântica e os desafios do Brasil

O Brasil não está fora da corrida global pelas tecnologias quânticas. Embora enfrente limitações estruturais, o país acumula investimentos relevantes e forma uma comunidade científica ativa. No fim dos anos 1990, foi criado o Instituto do Milênio de Informação Quântica, seguido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Quântica (INCT IQ). No entanto, transformar avanços teóricos em soluções práticas ainda é um obstáculo. Para o pesquisador, a formação de engenheiros quânticos — profissionais que atuam entre a ciência e a tecnologia — é fundamental.

Essa lacuna entre pesquisa e aplicação também é ressaltada por Samuraí Brito: “Quando decidimos lançar o Instituto de Ciência e Tecnologia Itaú (ICTI), foi exatamente para criar esse polo e transformar pesquisa científica em aplicação de valor para os nossos clientes”, pontua. O ICTI funciona como um hub de parcerias com universidades brasileiras como USP, Universidade Federal de Goiás (UFG) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de instituições internacionais como MIT e Stanford, ambas nos Estados Unidos. Embora o foco atual esteja mais voltado à inteligência artificial (IA) do que à computação quântica, o objetivo é explorar sinergias entre os dois campos e identificar onde a quântica poderá gerar benefícios reais. “Hoje, o que conseguimos com computação quântica continua no campo da experimentação. A tecnologia não está pronta para uso produtivo”, afirma a pesquisadora.

Essa interseção entre IA e computação quântica atrai o interesse de pesquisadores em várias partes do mundo. “Vejo essa convergência sendo explorada com diferentes perfis: em alguns lugares, o setor privado lidera; em outros, as universidades assumem o protagonismo”, diz Franklin Marquezino. Ele aponta um ecossistema global dinâmico, com centros fortes na Europa, América do Norte e Ásia, além de empresas focadas em aplicações industriais, como logística, simulações químicas e aprendizado de máquina. Redes colaborativas, como a QWorld, também surgem como iniciativas importantes, inclusive em países em desenvolvimento.

No Brasil, o cenário evoluiu, embora de forma desigual. “Quando comecei, há mais de 20 anos, havia poucos grupos na área. Hoje temos uma comunidade ampla, inclusive na interseção com IA”, relata Franklin Marquezino. Ele menciona a realização do WECIQ (Workshop-Escola de Computação e Informação Quântica), cuja oitava edição ocorrerá este ano em Florianópolis, como um sinal desse crescimento. Outro marco foi a aprovação do INCT de Computação Quântica Aplicada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em uma chamada altamente competitiva.

Apesar dos avanços, as limitações persistem. “Temos um celeiro riquíssimo de matemáticos, físicos e cientistas da computação, mas nem sempre conseguimos os recursos necessários para desenvolver pesquisas”, alerta Frank Oliveira. Para ele, computação quântica também é uma questão de soberania: “Já há embargos aplicados pelos Estados Unidos a países do Sul Global. Isso mostra o caráter estratégico do campo.”

 

“Muitas vezes, os entraves administrativos impedem parcerias estratégicas. Sem fluidez, perdemos oportunidades de transformar ciência em inovação.”

 

Gabriel Coutinho destaca o protagonismo brasileiro em áreas fundamentais como física, matemática e ciência da computação. “Quando um computador quântico for construído, certamente haverá algoritmos escritos por brasileiros rodando lá dentro.” Sem planos concretos para desenvolver um computador quântico nacional, o país aposta em dispositivos menores voltados à comunicação e sensoriamento, com possíveis aplicações comerciais.

 

Promessa de avanço ou ameaça de desigualdade?

A combinação entre inteligência artificial e computação quântica promete revolucionar setores como saúde, agricultura e energia. No entanto, especialistas alertam que essa nova fronteira pode acirrar desigualdades. “O potencial revolucionário da IA quântica pode tanto reduzir quanto ampliar as desigualdades tecnológicas. Hoje, o acesso a essa tecnologia é profundamente assimétrico, concentrado em potências econômicas e grandes corporações. Países em desenvolvimento correm o risco de ficar ainda mais para trás”, afirma Hilma Vasconcelos. Segundo ela, esse cenário não é irreversível, mas exige medidas ousadas, como fundos internacionais para apoiar países emergentes, programas de formação e consórcios que viabilizem o compartilhamento controlado de conhecimento. Ela ressalta ainda a importância de incorporar diversidade social e cultural no desenvolvimento, evitando a reprodução de desigualdades existentes.

Gabriel Coutinho cita um exemplo concreto de impacto positivo: o uso de computadores quânticos para simular moléculas e otimizar a produção de amônia, essencial para fertilizantes. “Se isso se concretizar, o planeta consumiria menos energia e os alimentos se tornariam mais baratos. Esse enriquecimento generalizado pode contribuir para reduzir desigualdades”, avalia. Mesmo países que não dominam a tecnologia se beneficiam dos avanços: “Mesmo os países que não constroem computadores têm um benefício econômico significativo pela existência deles.”

Ainda assim, o acesso a essa tecnologia permanece concentrado. O hardware quântico segue sob rígido controle de grandes potências e empresas privadas. Plataformas como IBM Quantum e Google Quantum AI oferecem acesso via nuvem, e iniciativas como os frameworks open-source (Qiskit, PennyLane) e o programa europeu Quantum Flagship promovem certa abertura. No entanto, o acesso profundo ainda é restrito. “Apesar desses riscos, há esforços importantes para democratizar a computação quântica e o aprendizado de máquina, tanto em formação quanto no uso de ferramentas abertas”, afirma Franklin Marquezino. Ele lembra o lançamento do IBM Quantum Experience, em 2016, como um marco. Hoje, a plataforma evoluiu e muitos recursos são pagos, mas ainda representa uma porta de entrada. Empresas como Xanadu (Canadá) e IQM (Finlândia) também oferecem conteúdos educativos gratuitos. A QWorld, segundo ele, faz um trabalho notável de inclusão educacional, com oficinas e materiais voltados a países em desenvolvimento. (Figura 1)


Figura 1. Cientista usa o IBM Quantum Experience em um tablet no IBM Quantum Lab que mostra um refrigerador de diluição aberto
(Fonte: Jon Simon/Feature Photo Service para IBM. Reprodução)

 

Frank Oliveira observa que a disputa geopolítica é intensa. Estados Unidos, China, Europa e Canadá investem bilhões, enquanto o Brasil, embora tenha boas iniciativas, ainda é pouco expressivo. “Estamos apagados. Os investimentos são bem-vindos, mas ainda insignificantes diante do que outros países têm feito”, comenta. Para ele, a resposta está na educação. “A saída é investir em educação. Essas tecnologias estão redefinindo o mundo.” Isso inclui fortalecer a divulgação científica, criar políticas de cooperação internacional e garantir que universidades façam parte do debate estratégico. (Figura 2)


Figura 2. Investimentos em computação quântica, privados e estatais, são massivos.
(Fonte: Google/ Divulgação. Reprodução)

 

Franklin Marquezino ressalta que o problema começa cedo: “Devemos priorizar a qualidade do ensino desde os níveis iniciais. Nosso desempenho em avaliações internacionais, como o PISA, revela um cenário preocupante.” Ele defende mais recursos para a ciência e a desburocratização da interação entre universidades e empresas. “Muitas vezes, os entraves administrativos impedem parcerias estratégicas. Sem fluidez, perdemos oportunidades de transformar ciência em inovação.”

 

Capa. a inteligência artificial quântica inaugura uma nova era na análise de dados e na resolução de problemas complexos
(Fonte: Freepik.com. Reprodução)
Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
4 comments
  1. O importante é seguirmos com as pesquisas independente do resultado destas, pois muitas tecnologias comuns outrora pareciam inviáveis. Nada se perde em uma pesquisa séria

  2. O importante é continuar a pesquisa, visto que muitas tecnologias comuns outrora eram “inviáveis”. Toda pesquisa séria rende bons frutos, independente dos resultados.

  3. “Máquinas não pensam, elas calculam” Frase certeira, comentário cirúrgico. Contribuições lúcidas e necessárias!

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