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As mulheres na ciência quântica

As trajetórias pouco contadas das cientistas que ajudaram a desvendar o mundo subatômico e mudaram a história da física moderna.

 

Max Planck, Niels Bohr, Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger, Louis de Broglie, Paul Dirac… Esses físicos fizeram contribuições fundamentais para o desenvolvimento e a compreensão da mecânica quântica, e seus nomes são lembrados e celebrados em livros didáticos, biografias e nas narrativas sobre como a ciência transformou o mundo. Mas será que, em uma revolução intelectual tão profunda, nenhuma mulher deixou sua marca? Será que a teoria quântica foi construída exclusivamente por mãos masculinas?

A resposta é não. Diversas mulheres deram contribuições essenciais à física quântica e a áreas relacionadas. Suas trajetórias, no entanto, seguem pouco conhecidas pelo público e, muitas vezes, até mesmo pela comunidade científica. “Quando olhamos para a trajetória da teoria quântica, percebemos contribuições variadas de muitas cientistas da época, tanto experimentais quanto teóricas, que, todas somadas, elucidaram o mundo atômico e subatômico tal como conhecemos hoje”, explica Cássia Alessandra Marquezin, professora do Instituto de Física da Universidade Federal de Goiás (UFG).

O impacto da ciência e das tecnologias quânticas é imenso, tendo dado origem a diversas áreas novas: desde a matéria condensada, passando pela física de partículas, pela teoria quântica de campos e pela informação quântica. “Praticamente toda a física que fazemos hoje, todas as áreas que temos hoje, praticamente não existiriam sem a mecânica quântica”, explica Renata Zukanovich Funchal, professora do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP). E a contribuição dessas mulheres não pode ser ignorada.

Desde o final do século XIX e ao longo do século XX, muitas cientistas enfrentaram barreiras sociais e institucionais para contribuir, de maneira decisiva, com os fundamentos da ciência moderna. Algumas atuaram diretamente na formulação teórica da quântica; outras, nas bases experimentais que a sustentaram; e outras ainda aplicaram os novos conceitos à astrofísica e à física nuclear. Muitas vezes, seus nomes foram esquecidos ou minimizados nos relatos históricos tradicionais.

 

As cientistas esquecidas da física quântica

Apesar de suas contribuições fundamentais, muitas cientistas foram invisibilizadas nos relatos oficiais da história da física quântica. Seus nomes, frequentemente ausentes dos manuais e cursos tradicionais, demonstram como gênero e questões políticas moldaram a memória científica.

 

“Atualmente, no Brasil, diversas mulheres cientistas têm se destacado, tanto na física teórica quanto na física experimental.”

 

Um exemplo é Hendrika Johanna van Leeuwen, orientada por Hendrik Lorentz, um dos gigantes da física clássica. Em sua tese de doutorado defendida em 1919 na Universidade de Leiden, Van Leeuwen abordou uma questão aparentemente clássica — o magnetismo — e demonstrou algo revolucionário: as teorias clássicas não explicam o magnetismo, sendo necessária uma abordagem quântica. Esse resultado, conhecido como Teorema de Bohr–van Leeuwen, foi obtido de forma independente por Niels Bohr alguns anos antes, mas acabou sendo mais associado ao físico dinamarquês. Apesar de seu nome constar no teorema, Van Leeuwen segue pouco reconhecida. Seu trabalho mostrou que, se a matéria fosse regida apenas pelas leis clássicas, os materiais não apresentariam magnetismo em equilíbrio térmico — uma das primeiras evidências teóricas da necessidade da mecânica quântica para explicar fenômenos cotidianos. Van Leeuwen seguiu carreira como professora de física teórica e aplicada na Technische Hogeschool Delft (atual Universidade Técnica de Delft), onde atuou por quase três décadas, embora sua trajetória siga pouco lembrada. “Eu conheço esse teorema que mostra que magnetismo não pode ser uma coisa clássica, tem que ser quântica. Magnetismo se conhece desde os gregos, mas quem mostrou isso com um teorema foi uma mulher. Eu só descobri que era dela quando pesquisei para uma conferência sobre mulheres na quântica”, declara Renata Zukanovich Funchal.

Outra pioneira esquecida é Hertha Sponer, nascida em 1895 na Alemanha. Formada na Universidade de Göttingen, um dos centros da mecânica quântica, obteve seu doutorado sob orientação de Peter Debye e trabalhou com James Franck. Foi uma das primeiras mulheres habilitadas a lecionar física na Alemanha. Seus experimentos em espectroscopia molecular validaram previsões da mecânica quântica e contribuíram para a física molecular moderna. Com Raymond Birge, desenvolveu o método de Birge–Sponer, que permite calcular a energia de dissociação molecular a partir de espectros vibracionais — ferramenta essencial na química e astrofísica quânticas. Até 1932, já havia publicado cerca de 20 artigos em revistas como Nature e Physical Review. Sua carreira foi interrompida em 1934 pela ascensão do nazismo, que perseguiu mulheres e judeus na academia. Hertha Sponer refugiou-se nos Estados Unidos, onde integrou a Universidade Duke e montou um laboratório de espectroscopia de referência internacional. Continuou ativa até sua aposentadoria e faleceu em 1968. Mesmo com essas realizações, permanece ausente nos relatos básicos da história da física. “Ela validou experimentalmente várias predições da mecânica quântica, com contribuições importantes na aplicação em física molecular”, explica Cássia Marquezin.

A alemã Lucy Mensing foi uma das primeiras a aplicar a mecânica quântica matricial — proposta por Heisenberg, Born e Jordan — à física molecular. Na Universidade de Hamburgo, sob orientação de Wilhelm Lenz, defendeu doutorado em espectroscopia de moléculas diatômicas. Posteriormente, em Göttingen, trabalhou com Pascual Jordan. Em 1926, publicou um artigo pioneiro aplicando a mecânica matricial aos espectros rotacionais moleculares, demonstrando que o momento angular orbital assume valores inteiros — um marco na quantização da energia molecular. Mensing colaborou ainda com Wolfgang Pauli em estudos sobre polarizabilidade elétrica de moléculas. Sua produção científica, publicada em periódicos como Zeitschrift für Physik, consolidou-a como uma das primeiras mulheres na linha de frente da física teórica quântica. Apesar disso, afastou-se da pesquisa após 1930, e sua trajetória foi obscurecida pelo machismo estrutural da academia.

Outra figura notável é Grete Hermann, matemática, física e filósofa alemã, aluna de Emmy Noether. Em 1932, publicou uma crítica à famosa prova de John von Neumann, que afirmava ser impossível construir teorias de variáveis ocultas compatíveis com a quântica. Grete Hermann identificou uma falha crucial: a prova só valia para grandezas mensuráveis simultaneamente, desconsiderando o princípio da incerteza. Sua crítica passou despercebida por mais de 30 anos, até ser redescoberta por John Bell nos anos 1960. Além da física, Hermann desenvolveu reflexões filosóficas sobre causalidade e previsibilidade na quântica, publicadas em sua obra “Os fundamentos da mecânica quântica na filosofia da natureza”. Seu apagamento histórico deve-se não só à misoginia, mas também à marginalização política e filosófica frente à interpretação dominante da época.

Nos Estados Unidos, Leona Woods foi a única mulher da equipe que construiu o primeiro reator nuclear, o Chicago Pile-1, durante o Projeto Manhattan. Aos 23 anos, já era doutora em física pela Universidade de Chicago. Leona Woods desenvolveu instrumentos essenciais, como contadores Geiger. Após a guerra, sua carreira incluiu passagens por Princeton, Brookhaven e Nova York, e pesquisas em astrofísica e mudanças climáticas. A pesquisadora também defendeu a irradiação de alimentos como método de segurança alimentar. Apesar de sua relevância, seu nome permanece pouco citado nos relatos sobre o Projeto Manhattan. (Figura 1)


Figura 1. Leona Woods
(Foto: Domínio Público)

 

“Historicamente, outra mulher invisibilizada, que não contribuiu diretamente para a mecânica quântica, mas estudou efeitos dela decorrentes, é Lise Meitner. Trabalhou com Otto Hahn no estudo da radioatividade e da fissão nuclear. Quando fugiu da Alemanha nazista, Hahn ganhou o Nobel sem sequer mencioná-la, embora ela tenha sido fundamental”, conta Thereza Paiva, professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cofundadora e coordenadora do Tem Menina no Circuito.

Lise Meitner foi uma das primeiras mulheres doutoras em física na Universidade de Viena e professora na Prússia. Em parceria com Otto Hahn, descobriu a fissão nuclear. Aliás, foi ela quem cunhou o termo “fissão nuclear” e demonstrou a liberação de energia por reações em cadeia. Mesmo assim, o Nobel de 1944 foi dado apenas a Otto Hahn. Lise Meitner também realizou trabalhos pioneiros em decaimento beta e espalhamento de partículas alfa. Descobriu, em 1922, o processo hoje conhecido como Efeito Auger, cujo nome acabou atribuído ao físico francês Pierre Auger, que o descreveu posteriormente. “Ela descobriu que, quando um elétron interno é expulso, outro elétron ocupa seu lugar, liberando energia que pode ejetar um terceiro elétron. Isso foi em 1922. Por que se chama Efeito Auger? Porque Auger ‘descobriu’ o mesmo um ano e meio depois”, aponta Renata Zukanovich Funchal.

Chien-Shiung Wu, sino-americana, também tem uma história notável. Viajou sozinha da China aos EUA para seu doutorado, em um período de grandes restrições para mulheres e estrangeiros. Em 1956, foi Wu quem realizou o experimento que confirmou a violação da paridade no decaimento beta, proposta por Lee e Yang, que receberam o Nobel em 1957 — deixando Wu de fora. Mais tarde, ela foi uma das primeiras a observar experimentalmente o emaranhamento quântico e defendeu a inclusão de mulheres e minorias na ciência. “A história da Madame Wu é fascinante. Imagine: uma chinesa que vem sozinha para os EUA fazer doutorado naquela época. Você pode imaginar o que era a China naquela época?”, diz Renata Zukanovich Funchal. (Figura 2)


Figura 2. Chien-Shiung Wu
(Foto: Columbia University Libraries. Reprodução)

 

Outros nomes também merecem destaque. Maria Skłodowska Curie, talvez a mais conhecida, foi pioneira nos estudos da radioatividade, fenômeno que exigiu novas abordagens quânticas. Primeira mulher a receber o Nobel de Física (1903) e única pessoa a ganhar dois Nobel em áreas diferentes (Física e Química), formou gerações de cientistas no Instituto do Rádio, em Paris. Também merece menção a física teórica estadunidense nascida na Alemanha Maria Göppert-Mayer, que propôs o modelo nuclear de camadas e foi a segunda mulher a ganhar um Prêmio Nobel em Física (1963).

Hedwig Kohn, especialista em espectroscopia, realizou experimentos fundamentais sobre emissão atômica e intensidade luminosa. Perseguida pelo nazismo por sua origem judaica, recomeçou sua carreira nos EUA, onde deu continuidade às suas pesquisas. Emmy Noether revolucionou a física com o Teorema de Noether (1918), que relacionou simetrias da natureza a leis de conservação — princípios centrais na mecânica quântica e na teoria quântica de campos. Expulsa de Göttingen pelo nazismo, seguiu carreira nos Estados Unidos.

Na astrofísica e física nuclear, outras mulheres também aplicaram conceitos quânticos emergentes. Cecilia Payne demonstrou que o hidrogênio é o elemento mais abundante do universo, transformando a astrofísica moderna. Harriet Brooks, no Canadá, realizou pesquisas pioneiras sobre radioatividade com Rutherford, identificando o radônio. Na Europa Central, Marietta Blau e Hertha Wambacher criaram a emulsão nuclear, técnica fundamental para detectar partículas subatômicas. Receberam o Prêmio Lieben em 1937. Erzsébet Róna, húngara naturalizada americana, aprimorou métodos de purificação do polônio e separação de isótopos radioativos, essenciais para a radiometria e a pesquisa em elementos instáveis.

 

Mulheres brasileiras na fronteira da física quântica

No Brasil, mulheres têm liderado pesquisas em áreas como informação quântica, novos materiais e magnetismo, evidenciando a diversidade e a força da ciência nacional. Atuando tanto na teoria quanto na experimentação, cientistas brasileiras contribuem para campos como óptica quântica, modelagem molecular, spintrônica e computação quântica. “Atualmente, no Brasil, diversas mulheres cientistas têm se destacado, tanto na física teórica quanto na física experimental, com aplicações diretas da mecânica quântica no desenvolvimento de novos materiais, por exemplo”, diz Cássia Marquezin.

Entre os nomes de destaque está Belita Koiller, professora da UFRJ e referência internacional em física da matéria condensada. Pioneira no estudo de sólidos desordenados e semicondutores, atualmente pesquisa o controle quântico do spin e da carga elétrica em semicondutores — tema estratégico para o desenvolvimento de computadores quânticos. Foi a primeira física titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), integra a Academia Mundial de Ciências (TWAS) e recebeu o Prêmio L’Oréal-UNESCO em 2005. “Para mim, no Brasil, na matéria condensada, Belita Koiller é um grande nome. Ela ganhou recentemente o Prêmio Joaquim Costa Ribeiro, da Sociedade Brasileira de Física (SBF), em reconhecimento às suas contribuições. Ela realmente formou pessoas e mostrou como pode haver uma liderança feminina nessa área”, aponta Thereza Paiva. (Figura 3)


Figura 3. Belita Koiller
(Foto: SBF. Reprodução)

 

A nova geração de cientistas quânticas no Brasil inclui nomes como Bárbara Lopes Amaral, que investiga contextualidade e não localidade quânticas; Fanny Béron, especialista em spintrônica e materiais magnéticos; Kaline Rabelo Coutinho, que aplica a modelagem quântica a biomoléculas e materiais funcionais; e Ingrid David Barcelos, premiada em 2024 por seus estudos com materiais bidimensionais e heteroestruturas.

Apesar dos avanços, a presença feminina ainda é minoritária, reflexo de desigualdades estruturais que se manifestam desde o ensino básico e se ampliam no meio acadêmico. Iniciativas como prêmios da Sociedade Brasileira de Física (SBF) e a Plataforma Lattes têm contribuído para dar maior visibilidade a essas trajetórias. “O Brasil é um país muito diverso, muito grande. Então, há vários grupos de pesquisa: algumas áreas mais desenvolvidas, outras menos, mas com gente trabalhando em temas de ponta em diferentes regiões do Brasil”, enfatiza Renata Zukanovich Funchal.

 

Abrindo caminhos

Apesar de a história estar começando a mudar, ainda há um longo caminho a ser percorrido. O chamado “efeito tesoura”, identificado por Thereza Paiva a partir de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), evidencia que, apesar do aumento da participação feminina, a desigualdade cresce ao longo da trajetória acadêmica. Desde a iniciação científica até as bolsas de produtividade, observa-se um funil que estreita as oportunidades. “Se você olha as bolsas de iniciação científica, o número de partida de mulheres nas áreas exatas já é menor, e no mestrado menos ainda, no doutorado menos, na produtividade menos, e assim vai sempre caindo. Então, o efeito tesoura ainda está lá”, pontua a pesquisadora.

 

“É importante sensibilizar os homens, eles são fundamentais nessa luta.”

 

Para mudar esse cenário, é essencial o apoio de professores, colegas e gestores homens, aliado a políticas públicas, explica Renata Zukanovich Funchal. A ampliação dos prazos de bolsas em caso de maternidade e a criação de creches durante congressos são exemplos concretos de avanços. “É importante sensibilizar os homens, eles são fundamentais nessa luta”, ressalta.

Essas transformações não ocorrem por acaso: resultam de lutas coletivas e da atuação de pessoas dispostas a abrir caminhos. Valorizar o papel dessas mulheres é fundamental, pois elas se tornam referências para que novas gerações de meninas visualizem a possibilidade de trilhar percursos semelhantes e ocupar esses espaços. Como lembra Thereza Paiva, figuras como Belita Koiller cumprem esse papel inspirador: “As mulheres que contribuem têm um papel muito importante para as gerações mais novas, de serem modelos e de mostrarem que aquilo é possível. Para mim, quem exerceu esse papel de modelo e liderança foi a professora Belita Koiller. Ela foi minha professora na graduação e eu olhei para ela quando eu era aluna e pensei: ‘Ah, isso aí existe, e eu quero ser isso aí, uma mulher pesquisadora’”.

 

“As mulheres que contribuem têm um papel muito importante para as gerações mais novas, de serem modelos e de mostrarem que aquilo é possível.”

 

A física quântica não é uma narrativa sobre gênios solitários, mas uma construção coletiva, feita de múltiplas vozes e perspectivas. O desafio contemporâneo é garantir que essas vozes não sejam mais silenciadas e que a ciência se torne um espaço cada vez mais plural, onde meninas e mulheres possam não apenas sonhar, mas também transformar a realidade. Como na própria quântica, onde partículas podem ocupar múltiplos estados ao mesmo tempo, o futuro da ciência não está determinado: ele depende das escolhas que fazemos hoje.

 

Capa. Lise Meitner
(Foto: Cordon Press. Reprodução)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
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