Poliglota, espião, sexólogo e tradutor de clássicos como As Mil e Uma Noites e Os Lusíadas, o excêntrico Burton teve uma vida tão intensa que parece ficção
Um homem, muitos mundos. Escritor, explorador, antropólogo, poeta, diplomata, espião e até sexólogo — Sir Richard Francis Burton (1821–1890) foi tudo isso e mais um pouco. Tão multifacetado que sua vida parece ter sido escrita por um romancista com gosto por personagens extravagantes e tramas improváveis. Alto, forte, eloquente e dono de um charme que cativava desde salões europeus até desertos africanos, Burton falava 29 línguas com fluência — e dezenas de dialetos — dominava culturas diversas, e colecionava inimigos e admiradores com a mesma facilidade.
Nascido na Inglaterra, filho de um capitão, viveu parte da infância entre França e Itália, o que lhe garantiu desde cedo um ouvido aguçado para idiomas. Ainda jovem, aprendeu grego, latim, romeno, francês, italiano, além de dialetos locais. Mais tarde, já como oficial do exército britânico na Índia, aprendeu árabe, persa, hindi e muitas outras línguas regionais, que falava com perfeição — e sem sotaque. Chegou a se infiltrar disfarçado em mesquitas e bordéis, usava turbantes, conhecia os rituais islâmicos a fundo e até se converteu ao sufismo, embora mantivesse isso em segredo da própria esposa, Isabel Arundel.

(Reprodução)
Burton era um polímata inquieto. Ao longo de seus 69 anos, escreveu 43 livros, traduziu obras literárias fundamentais e produziu estudos etnográficos ousados, especialmente sobre sexualidade — assunto delicado na Inglaterra vitoriana. Entre suas traduções mais famosas estão As Mil e Uma Noites e o Kama Sutra, este último publicado por meio de uma engenhosa sociedade secreta para driblar a censura moral. Não se limitava a traduzir: em notas extensas, explicava os contextos históricos, culturais e simbólicos para o leitor ocidental. Ele também foi o primeiro a traduzir Os Lusíadas de Camões para o inglês — uma prova de sua admiração pelo poeta português, a quem considerava um gigante literário.
Intrépido, Burton foi um dos primeiros ocidentais não muçulmanos a entrar em Meca e sair vivo. Descobriu, ao lado de John Speke, a nascente do rio Nilo. Foi o primeiro europeu a visitar Harar, cidade proibida na Etiópia. Viajou ao continente americano para estudar os mórmons e, no Brasil, exerceu papel de diplomata — mas seu interesse estava muito além das burocracias do cargo. Como cônsul britânico em Santos, logo migrou para São Paulo, onde fez amizade com a Marquesa de Santos, frequentou o Palácio Imperial e estudou a cultura local com afinco.
Viagem ao Brasil
Burton navegou o rio São Francisco de Minas até o mar, observou sambaquis em Santa Catarina — tornando-se o primeiro a registrar sua importância arqueológica — e acompanhou o Duque de Caxias durante a Guerra do Paraguai como observador. Nos fins de tarde, era visto na biblioteca do Largo São Francisco em São Paulo, pesquisando sobre o Brasil colonial, suas minas e sua natureza exuberante. Fazia piqueniques com Isabel no Morro de Nossa Senhora do Ó, encantado com a paisagem do pico do Jaraguá e o leito ainda limpo do rio Tietê.
“Ao longo de seus 69 anos, escreveu 43 livros, traduziu obras literárias fundamentais e produziu estudos etnográficos ousados, especialmente sobre sexualidade.”
Mas nem tudo eram flores. A elite britânica via Burton como um sujeito difícil: pavio curto, boêmio, imprevisível e desrespeitoso com os valores da nobreza. Ele, por sua vez, desprezava o puritanismo inglês, a pompa imperial e as “damas frias e sem graça”. Viciado em ópio, álcool e haxixe, usava o serviço ao Império mais como passaporte para seus próprios interesses do que por lealdade à coroa.
Burton acreditava que a melhor forma de aprender um idioma era “se deitando com uma nativa”. Frase polêmica, mas coerente com seu método sensorial e imersivo de conhecer os povos que estudava. Sem filtros, descreveu as práticas sexuais de diferentes culturas, inclusive a homossexualidade em bordéis indianos frequentados por soldados britânicos — o que gerou controvérsias e alimentou rumores sobre sua própria sexualidade.
“Como cônsul britânico em Santos, logo migrou para São Paulo, frequentou o Palácio Imperial e estudou a cultura local com afinco.”
Após sua morte, sua esposa Isabel — mulher profundamente religiosa — queimou parte de seus escritos, considerados “pervertidos”, privando o mundo de uma fração de sua produção intelectual. Ainda assim, Burton deixou um legado monumental. Suas viagens e textos ajudaram o Ocidente a compreender, mesmo que enviesadamente, o Oriente e outras culturas não-europeias. Sua biografia é uma odisseia do século XIX, e sua vida, um lembrete de que a realidade pode, sim, ser mais impressionante que a ficção.


