De muros a murais, artistas urbanos transformam as cidades em telas de conscientização ecológica, provocando reflexão e mobilização popular.
A arte sempre teve o poder de dar visibilidade ao que está escondido e voz ao que não é ouvido. Por isso, em tempos de mudanças climáticas, crise ambiental e desigualdade social exacerbadas, em que o planeta e a sociedade gritam por transformações urgentes, a arte urbana tem se mostrado um porta-voz tanto do meio ambiente quanto da periferia. Unir arte e ativismo ambiental tem se revelado uma estratégia poderosa de mobilização social nas cidades. Por meio de grafites, murais, instalações e performances, artistas urbanos transformam o espaço público em plataformas de denúncia, reflexão e inspiração ecológica.
Essas intervenções, acessíveis e visualmente impactantes, colocam em pauta temas como poluição, desmatamento, mudanças climáticas e sustentabilidade, levando a mensagem ambiental para além das salas de aula e instituições formais. Ao sensibilizar a população de forma direta e afetiva, a arte urbana não apenas denuncia os problemas, mas também propõe imaginários coletivos para futuros mais sustentáveis, tornando-se uma aliada fundamental na educação ambiental contemporânea.
Para Daniela Mendes Cidade, professora do Departamento de Arquitetura e pesquisadora na área de Arquitetura e Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o debate sobre sustentabilidade vem sendo tratado com preocupação no campo da arte, assim como na arquitetura e no urbanismo, entre outras áreas do conhecimento. No entanto, ela ressalta que os desafios continuam imensos: “A vida saudável no planeta é incompatível com os interesses de governantes e do neoliberalismo”. A arte, nesse contexto, torna-se um canal potente de expressão, provocação e educação — mesmo quando esse viés educativo não é intencional. “Aproximando arte e vida, artistas encontram na cidade um meio de atingir o público em geral de uma maneira mais direta. Arte urbana é como um ‘tropeço’ no andar cotidiano. Nos faz parar, olhar, pensar o presente e imaginar um futuro melhor. Se o que ela traz é uma abordagem sobre o meio ambiente, ela vai nos fazer refletir sobre isso. E refletindo sobre isso, quem sabe possa nos impactar para ter uma posição mais crítica em relação às nossas próprias ações cotidianas que possam impactar o meio em que vivemos”, explica.
Essa capacidade de provocar, inspirar e educar também é destacada por Márcia Mariana Bittencourt Brito, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (UFPA), que observa como a crise climática e a urgência da justiça ambiental têm mobilizado artistas, instituições, coletivos e educadores. A arte urbana, segundo ela, é uma forma direta de expressão democrática: “É uma expressão que impulsiona os artistas a se expressarem livremente e diretamente com as pessoas de forma democrática”.
Diego Ricca, professor do curso de Design da Universidade Federal do Ceará (UFC), reforça o potencial sensível e comunicativo dessas intervenções: “Quando falamos de meio ambiente e sustentabilidade, tratamos de temas que muitas vezes parecem distantes da experiência cotidiana. A arte, especialmente aquela que ocupa os espaços públicos, tem o poder de traduzir essas questões em imagens, gestos e formas que tocam afetivamente as pessoas.”
“A vida saudável no planeta é incompatível com os interesses de governantes e do neoliberalismo.”
Esse movimento artístico ganha ainda mais força e relevância diante dos desafios globais. Com a realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), marcada para ocorrer em 2025 na cidade de Belém (PA), será a primeira vez que a conferência ocorrerá não apenas no Brasil, mas também no coração da maior floresta tropical do planeta. É um momento simbólico e estratégico para reunir governos, cientistas, organizações e populações tradicionais em torno de ações concretas para conter o aquecimento global. Nesse cenário, a arte urbana aparece como uma aliada vital na construção de um imaginário coletivo sobre sustentabilidade e justiça climática — pintando muros, mas também plantando consciência.
Arte urbana como ferramenta para discutir o meio ambiente
A arte urbana tem se consolidado como uma poderosa ferramenta para levar o debate ambiental a diferentes públicos — especialmente àqueles historicamente excluídos das grandes decisões políticas. De norte a sul do Brasil, iniciativas que unem arte, ecologia e cidadania transformam os muros das cidades em espaços vivos de reflexão, denúncia e pertencimento. “Como designer e artista, acredito que sua potência reside justamente na capacidade de deslocar o olhar, criar estranhamentos e provocar diálogos onde antes havia indiferença”, afirma Diego Ricca.
Esse deslocamento simbólico também move o trabalho de Liz Sandoval, arquiteta da Advocacia-Geral da União (AGU), pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), e curadora e idealizadora da Mostra Internacional de Cinema de Arquitetura – Cinema Urbana. Iniciada em Brasília, em 2018, a mostra rapidamente extrapolou os limites das salas de exibição para ocupar ruas, escadarias, fachadas e praças públicas. “Percebi que debater a cidade apenas dentro da sala escura do cinema era limitador. A cidade precisa ser vivida, tocada, ocupada”, diz Liz Sandoval.
Esse enraizamento nos territórios também é enfatizado por Márcia Brito. Segundo ela, mesmo com pouca produção acadêmica sobre o tema, a arte urbana não está ausente da região — apenas pulsa fora das universidades. “A arte revela aquilo que emerge dos desejos e interesses dos artistas. A formação vem mudando ao longo do tempo, incluindo temas urgentes como diversidade, racismo e pautas LGBTQIAP+. Tudo isso influencia as linguagens artísticas que encontramos nas ruas”, pontua.
A diversidade de linguagens é imensa: de murais e esculturas feitas com resíduos sólidos a performances e instalações. Daniela Cidade lembra, por exemplo, do mural “Lutz”, realizado por Kelvin Koubik em Porto Alegre, em homenagem ao ambientalista José Lutzenberger, visível de longe por sua escala e localização. Ela também destaca artistas como Bordalo II, que cria esculturas de animais com lixo industrial, e a atriz Gabriela Carneiro da Cunha, cuja performance “Altamira 2042” denuncia os impactos da barragem de Belo Monte. “A arte do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens – também merece destaque, sobretudo pelo trabalho do Coletivo de Mulheres Atingidas por Barragens, que cria obras inspiradas nas Arpilleras chilenas para denunciar violações ambientais e sociais”, diz.
No Brasil, muitos artistas se dedicam a esse tipo de produção. Diego Ricca lembra do paulistano Mundano, que transformou 250 quilos da lama de Brumadinho em tinta para criar um mural com 22 rostos das vítimas. Seu projeto Pimp My Carroça revitaliza carroças de catadores com grafites e itens de segurança, trazendo visibilidade a esses trabalhadores. “Levei meu trabalho para além dos muros e para as carroças, como um novo suporte urbano para minha mensagem… os catadores estão saindo da invisibilidade e se tornando cada vez mais respeitados e valorizados”, disse o artista durante o TED Brasil. (Figura 1)

Figura 1. Projeto Pimp My Carroça
(Foto: Pimp My Carroça. Reprodução)
Outros nomes e coletivos também se destacam. No Ceará, o artista Narcélio Grud combina som, paisagem e interação em obras que dialogam com o meio ambiente. Em Fortaleza, o Festival Concreto, organizado por ele, convida artistas de diversos países a repensarem o espaço urbano. Já o Coletivo Raízes do Griô atua na cidade com música, arte-educação e cultura ancestral, promovendo encontros entre crianças, jovens e os saberes indígenas e africanos. Rodrigo Cordeiro e o artista Gamão, por sua vez, criaram o projeto Grafite contra enchente, em Taboão da Serra (SP), que alerta para a preservação da água com uma gigantesca pintura em uma ponte — a primeira da região totalmente grafitada. (Figura 2)

Figura 2. Coletivo Raízes do Griô
(Foto: Mapa Cultural do Ceará. Divulgação)
A série de iniciativas é extensa. Em Minas Gerais, o projeto Arte nas Águas de Minas, viabilizado pela Lei Rouanet, leva murais com a temática da água a cidades do estado, propondo uma nova forma de pensar o uso sustentável dos recursos hídricos. Em Picos (PI), o projeto Ser Junco transforma lixo em mobiliário urbano e arte pública, combinando intervenções visuais com ações de reflorestamento em bairros periféricos. Em Campinas (SP), a artista S. Urbana revitalizou a fachada de uma escola pública com um mural que integra arte e natureza, em parceria com a comunidade local.
E em Belém do Pará, cidade que sediará a COP30, a efervescência artística é visível nas periferias. Márcia Mariana Bittencourt Brito cita os bairros da Terra Firme, Guamá, Benguí, Jurunas e as ilhas do Combú como territórios vivos de arte e resistência. O Museu de Arte Urbana de Belém e a Bienal das Amazônias, criada por Lívia Condurú, reúnem obras de artistas como Lenu Art, Daniel Ops, Éder Oliveira, Drika Chagas, entre outros, com forte sensibilidade para as questões ambientais e sociais da região.
O projeto Favela Galeria, em São Paulo, é outro exemplo marcante: criado pelo grupo OPNI, transforma bairros periféricos em verdadeiras galerias a céu aberto, com obras que celebram a cultura local e provocam reflexão crítica sobre o espaço urbano. (Figura 3)

Figura 3. Favela Galeria
(Foto: Grupo OPNI. Divulgação)
Como resume Diego Ricca: “O impacto dessas obras reside na fusão entre estética e ética, entre o sensível e o político.” Ao ocupar as cidades com arte, essas iniciativas constroem caminhos possíveis para uma educação ambiental mais inclusiva, afetiva e transformadora — uma educação que fala por imagens, sons, gestos e cores, mas também por e com os territórios.
Intervenções artísticas e transformação do espaço público
As intervenções artísticas em espaços urbanos têm o poder de transformar não apenas a paisagem, mas também o modo como nos relacionamos com a cidade. Mais do que alterar fachadas ou revitalizar muros, essas ações provocam deslocamentos simbólicos, afetivos e políticos, despertando novas percepções sobre o território, o meio ambiente e as possibilidades de futuro.
Para Daniela Cidade, a arte urbana confere singularidade ao espaço público e o ressignifica para além de sua função utilitária. “A arte pública dá sentido ao lugar. O espaço deixa de ser apenas de passagem, moradia ou trocas de mercadorias, constituído de elementos concretos, e se torna singular, atuando desde a fruição estética até a possibilidade de despertar para o sensível e provocar afetivamente os transeuntes comuns que muitas vezes não frequentam espaços de arte institucionais.” Em sua visão, a presença poética de imagens no cotidiano urbano nos transporta para fora da cidade concreta, em direção à natureza ou a um futuro sustentável. “A imagem poética no cotidiano urbano provoca sim outras narrativas ativadas pela memória e pelo invisível — o sentimento e a imaginação — que se estabelecem entre imagens internas e externas: o contexto urbano e o ‘fora da cidade’”, afirma.
Já para Diego Ricca, essas intervenções operam como uma reconfiguração simbólica e política dos territórios urbanos. “Quando uma praça abriga uma instalação que convida à escuta da natureza ou quando um mural revela a história de um rio enterrado, temos ali um gesto de desestabilização do uso normativo do espaço urbano.” Ele destaca a importância de permitir que outras vozes — como as da memória ancestral ou dos futuros possíveis — ocupem a cidade: “Criar novas narrativas não é apenas contar novas histórias, mas permitir que outros sujeitos e temporalidades tenham voz. A cidade passa a ser pensada não como máquina de produtividade, mas como ecossistema vivo.”
“Quando uma praça abriga uma instalação que convida à escuta da natureza ou quando um mural revela a história de um rio enterrado, temos ali um gesto de desestabilização do uso normativo do espaço urbano.”
Liz Sandoval também defende que a arte urbana contribui para deslocar o olhar habitual sobre os espaços cotidianos. “Queremos despertar nas pessoas a consciência de que os espaços urbanos não são neutros — eles são construídos por decisões políticas, econômicas e culturais, e carregam marcas de exclusão, resistência e memória.” Para ela, ao intervir artisticamente em escadarias, fachadas, praças e vias públicas, é possível criar momentos de encontro, cuidado e reflexão. “A mensagem central é: a cidade nos pertence, e podemos (re)imaginá-la coletivamente”, afirma.
A força das periferias: arte, desigualdade e imaginação ecológica
As periferias urbanas concentram algumas das maiores contradições socioambientais do país. São territórios onde o racismo ambiental, a ausência de infraestrutura e o descaso histórico do poder público se tornam evidentes no cotidiano — e, ao mesmo tempo, onde emergem potentes formas de resistência, criação e reexistência. É nesse contexto que a arte urbana se fortalece não apenas como expressão estética, mas como prática política, educativa e transformadora.
“Sim, acreditamos que a arte que nasce nas periferias — tanto urbanas quanto geopolíticas — tem um papel fundamental e, muitas vezes, mais potente na mobilização para causas ambientais”, afirma Liz Sandoval. Para ela, é justamente por emergir da experiência direta de desigualdade ambiental que essa arte mobiliza com tanta força. “A arte periférica tem o poder de traduzir complexidades com linguagem acessível, sensível e conectada ao território, criando vínculos afetivos e políticos com o público.” A partir de vivências concretas com a crise climática, a poluição, o extrativismo e o abandono, a arte periférica se torna uma forma de denúncia, cuidado e construção coletiva de novos imaginários ecológicos. “Ela amplia o repertório do que entendemos como crise ambiental e nos faz refletir sobre a diversidade das respostas possíveis”, completa.
Para Diego Ricca, a potência da arte periférica está ligada à sua capacidade de ouvir o território e criar com os recursos disponíveis, o que ele chama de “design insurgente”. “Muitas vezes, é nas bordas que nascem as práticas mais potentes de regeneração urbana e ecológica, pois partem da experiência vivida, não de teorias abstratas.” Nessas regiões, a arte urbana incorpora funções que vão além da estética: torna-se memória, denúncia, cuidado e resistência. “A arte tem papel essencial na mobilização e sensibilização. Em alguns casos, ela precede e impulsiona ações públicas. Ações coletivas criam vínculos, redes de cuidado e pressão social. Como artista e pesquisador, acredito que a arte pode ser ao mesmo tempo poesia e projeto — um gesto simbólico que antecipa futuros possíveis.”
Essa articulação entre arte, território e vivência cotidiana se evidencia também no reconhecimento crescente de artistas que nasceram e vivem nas margens das cidades. “Hélio Oiticica trouxe para a arte a sua experiência na favela, aproximando arte e vida e provocando a interação do público diretamente com a sua obra. Mas ele não nasceu na periferia”, lembra Daniela Cidade. Hoje, destaca ela, nomes como Anderson Valentin, oriundo da favela do Borel (RJ), contribuem para desconstruir estigmas e denunciar violências — não a violência de dentro da favela, mas aquela imposta de fora, pela negligência estrutural. “Acredito que o que impulsionou a arte da periferia foi o Hip Hop, onde o grafite é um dos elementos. Em Porto Alegre temos o Museu do Hip Hop, que reconhece e divulga essa arte com forte papel educativo”, afirma.
Apesar de sua potência simbólica, afetiva e pedagógica, os entrevistados reconhecem os limites da arte frente a estruturas de poder mais amplas. “As manifestações coletivas no campo da arte, isoladamente ou associadas a outras áreas, podem sim sensibilizar a população e até alguns setores públicos. Mas impactar diretamente políticas ambientais é mais difícil. Temos presenciado uma grande omissão do poder público em relação ao meio ambiente”, aponta Daniela Cidade. Incentivos ao setor imobiliário, à flexibilização das leis ambientais e à negação da crise climática ainda são obstáculos recorrentes.
“A arte tem papel essencial na mobilização e sensibilização. Em alguns casos, ela precede e impulsiona ações públicas.”
Mesmo assim, a arte segue abrindo caminhos. “Embora essas mudanças muitas vezes não sejam visíveis de forma imediata ou mensurável, elas acontecem de modo sutil, afetivo e acumulativo”, diz Liz Sandoval. Ela destaca o impacto emocional de imagens, filmes e obras que permanecem na memória do público. “Não acredito que a arte, sozinha, transforme estruturas. Mas ela cria condições simbólicas e emocionais para que as mudanças aconteçam: abre brechas no cotidiano, tensiona certezas, propõe outros modos de ver, de sentir e de estar no mundo. E, para mim, isso já é um ato profundamente político e transformador.”
Capa. Museu de Arte Urbana de Belém (Maub)
(Foto: Divulgação)


