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Cidades que adoecem

A relação entre urbanismo e saúde

 

Em julho de 2014, durante um evento no Instituto de Câncer Dana-Farber, a pesquisadora e bioestatística americana Melody Goodman lançou uma provocação que ainda ecoa, mesmo após uma década, nos debates sobre saúde pública: o lugar em que você mora pode dizer mais sobre sua saúde do que o seu próprio código genético. Embora sucinta, a afirmação carrega reflexões importantes sobre como as condições que cercam o cotidiano são decisivas na manutenção da saúde física e mental. Nesse contexto, o urbanismo e o modo como planejamos nossas cidades ganham destaque, com potencial de criar e manter espaços voltados à promoção da saúde que rompem, aos poucos, com a lógica de crescimento desordenado que transforma as cidades em lugares que adoecem.

De acordo com o Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 87,4% da população brasileira, ou mais de 177,5 milhões de pessoas, vive em áreas urbanas. Em relação ao levantamento de 2010, houve um crescimento de 3% no número de moradores nas cidades. A pesquisa evidencia que a migração do campo para os centros urbanos, acelerada desde os anos 1960, ainda é uma realidade. Esse movimento impõe desafios crescentes ao planejamento urbano, já que é preciso acolher mais pessoas e atender suas necessidades com eficiência. “As grandes aglomerações urbanas gigantes do século XX não possuem mais nada daquilo que no passado chamava-se cidade”, diz Jean-Louis Harouel em seu livro “História do Urbanismo”. O autor destaca como alguns dos principais desafios o crescimento demográfico, a perda de espaço individual e o aumento no consumo de bens e serviços. Cabe ao urbanismo, então, interpretar essas novas demandas e propor soluções que tornem os espaços mais funcionais, inclusivos e saudáveis.

Para alcançar essa meta, é preciso, por exemplo, equilibrar o avanço tecnológico com o aproveitamento do território e com a produtividade, visando metas econômicas e políticas. Porém, esse processo pode deixar rastros – como desigualdades ou a priorização de certos aspectos em detrimento de outros – que afetam direta ou indiretamente a saúde da população. “Em alguns casos, o lucro acaba ganhando destaque em detrimento da saúde da população”, diz Paulo Saldiva, médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Diante dessa complexidade, Helena Ribeiro e Heliana Comin Vargas, pesquisadoras da Faculdade de Saúde Pública e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, respectivamente, propuseram uma classificação guiada por quatro aspectos centrais para analisar a qualidade do ambiente urbano na promoção da saúde: biológico, social, econômico e espacial.

 

“Em alguns casos, o lucro acaba ganhando destaque em detrimento da saúde da população.”

 

No aspecto biológico, as autoras destacam fatores como saneamento básico e qualidade do ar. A dimensão social envolve a presença de espaços de convivência e oportunidades de socialização, entre outros. No campo econômico, entram em cena a diversidade de atividades, a oferta de oportunidades e a produtividade. Por fim, no aspecto espacial, são importantes elementos como acessibilidade, desenho urbano, espaços abertos e áreas verdes. Entender como esses fatores se articulam no meio urbano é essencial para avaliar os efeitos da urbanização na saúde das populações e propor caminhos mais equilibrados e sustentáveis para o futuro das cidades.

 

Ar que pesa no coração

À medida que as cidades se tornaram mais produtivas e densas, o ar também passou a pesar mais. As atividades industriais e os veículos automotores, que se popularizaram no século XX com a concentração urbana, tornaram-se as principais fontes de contaminantes que poluem o ar e afetam diretamente a saúde. Mais recentemente, estudos revelaram que essa mistura invisível de partículas e gases penetra fundo nos pulmões, alcança a corrente sanguínea e afeta diversos órgãos e sistemas. “A poluição atmosférica é como um equivalente ambiental do cigarro”, diz Paulo Saldiva. “Ela entra no corpo, é distribuída pela corrente sanguínea e afeta todo o organismo. Inclusive, pode atravessar a placenta de gestantes e chegar no bebê”, complementa.

Em um de seus estudos, Paulo Saldiva investiga a relação entre poluição e doenças cardíacas. O trabalho, denominado “Associação do acúmulo de carbono negro pulmonar com fibrose cardíaca em residentes de São Paulo, Brasil”, mostra que a exposição prolongada à poluição pode favorecer o aumento dos riscos cardíacos, especialmente em pessoas hipertensas e fumantes. De acordo com os dados, quanto maior o tempo de exposição, maiores são as chances de se desenvolver fibrose cardíaca, um indicador importante de doenças no coração. (Figura 1)

 
Figura 1. Poluição atmosférica em São Paulo
(Foto: abio Ikezaki / Flickr / CC BY-SA 2.0)

 

No cenário descrito por Helena Ribeiro e Heliana Comin Vargas, onde a qualidade do ar é um dos parâmetros para avaliar ambientes urbanos saudáveis, o médico ressalta que os efeitos da poluição não são iguais para todos. “O nível de concentração de poluição ambiental não significa que a dose recebida é a mesma para todos. Se você está em um corredor de tráfego por horas, recebe uma dose maior porque a concentração daquele ambiente é particularmente mais elevada”, exemplifica, em entrevista à Agência FAPESP. Para ele, isso reforça como o planejamento urbano e a distribuição da população impactam a saúde. “Muitas vezes, quem tem menos recursos acaba morando em regiões mais afastadas e precisa enfrentar longos deslocamentos diários”, comenta. “Sem mencionar que o prejuízo ao sono por conta do tempo que se leva no trânsito, por exemplo, pode prejudicar a saúde mental e favorecer transtornos como ansiedade, depressão ou mesmo esquizofrenia, se houver tendência genética”, alerta.

Além do coração, o cérebro também pode ser afetado pela poluição atmosférica. “Existe uma associação epidemiológica entre a demência, o Alzheimer e exposição crônica aos poluentes”, destaca Paulo Saldiva em entrevista ao Instituto Conhecimento Liberta. Ele explica que o cérebro pode ser atingido pelos poluentes por dois canais: a corrente sanguínea e o epitélio do nariz – a fina camada de pele que reveste as narinas internamente. “Nunca nosso cérebro esteve tão próximo das ruas; ele está separado por uma fina camada de células […] e nervos (…)”, afirma.

 

“A poluição atmosférica é como um equivalente ambiental do cigarro.”

 

Entre as soluções defendidas por Paulo Saldiva para enfrentar os impactos da poluição, estão os investimentos em transportes de baixa emissão. “Um transporte de massa eficiente e de baixa emissão não depende só de tecnologia. É preciso planejamento urbano”, diz. “O carro elétrico, por exemplo, pode parecer uma alternativa sustentável, mas não resolve o problema estrutural: continua sendo um transporte individual e de alto custo energético para produção. Ou seja, mantém o mesmo modelo rodoviário, quando o ideal seria investir em transporte coletivo elétrico e em soluções compartilhadas para os trajetos curtos”, conclui. O adensamento populacional também é uma das propostas do pesquisador. “Em São Paulo, por exemplo, bairros da Zona Leste concentram uma grande população que precisa se deslocar para o centro todos os dias. O metrô vai lotado em um sentido pela manhã, e vazio no outro. À tarde, o movimento se inverte. Isso mostra que a cidade está desequilibrada e que seria preciso redistribuir empregos, moradia e serviços”, aponta.

 

Natureza ausente e a importância dos espaços verdes

O discurso de Paulo Saldiva também se alinha à proposta de Helena Ribeiro e Heliana Comin Vargas ao defender que uma cidade mais saudável exige a priorização de espaços verdes nos centros urbanos. “A vegetação ajuda de várias formas”, defende o médico. “Primeiro, porque aumenta a umidade do ar. As partículas poluentes se juntam às gotículas de vapor d’água, condensam e caem no chão. É como se a umidade agisse como um filtro natural”, exemplifica. Ele destaca que as folhas também atuam como barreiras físicas. “Elas têm uma camada de cera que retém partículas. Se você passar um algodão branco numa folha de árvore perto de uma avenida, vai ver a quantidade de sujeira que ela acumulou”, ressalta. (Figura 2)


Figura 2. Espaços verdes contribuem para a saúde dos grandes centros urbanos
(Foto: Divulgação)

 

Algumas iniciativas em andamento, como as hortas urbanas, são importantes nesse contexto. Letícia Machado, Geógrafa e Mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública da USP, estudou esse tema em sua pesquisa “Hortas Urbanas: acesso a alimentos saudáveis e promoção da saúde em uma metrópole”. Ela destaca o papel multifuncional das hortas, que além de ampliar a vegetação urbana e gerar benefícios ambientais, promovem o acesso a alimentos naturais como hortaliças, legumes e frutas. “O consumo desses alimentos é fundamental para a obtenção de vitaminas e nutrientes para o organismo e para combater as tendências identificadas pela última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), que mostram redução no consumo de hortaliças”, diz. Segundo Letícia Machado, a agricultura urbana aproxima e descentraliza a produção, facilitando o acesso e incentivando o consumo. “No meu mestrado, entrevistei pessoas que disseram ter voltado a consumir hortaliças com mais frequência justamente porque a horta ficava perto de casa. A proximidade permitia visitas diárias e o acesso a alimentos frescos, o que facilitava a inclusão desses itens na alimentação”, recorda.

Além dos benefícios físicos, espaços verdes, como as hortas urbanas, também promovem saúde mental. “As hortas urbanas são muito utilizadas como prática de sociabilidade para pessoas idosas, ajudando a reduzir quadros de depressão e promovendo bem-estar”, diz Letícia Machado. “Há experiências que mostram a importância das hortas pedagógicas na interação das crianças com a natureza. É uma forma prática e lúdica de aprender, que estimula o cuidado com o meio ambiente desde cedo”, complementa. Ela ainda ressalta o potencial desses espaços para aliviar o estresse. “Passar um tempo mexendo com a terra e cultivando plantas ajuda a desconectar das pressões do dia a dia – algo especialmente valioso para quem vive nas grandes cidades”, diz.

Paulo Saldiva salienta que a inclusão de espaços verdes pode ser adaptada às necessidades e à realidade do local. “A área verde não precisa estar só no chão. Em muitos lugares, simplesmente não há espaço disponível para criar parques ou jardins. Mas há tetos. E é justamente aí que entram soluções como os telhados verdes, que ajudam a reduzir o calor dentro das casas”, exemplifica. “A arborização ajuda em questões como a poluição, sim, mas, para isso, é fundamental usar espécies adequadas ao clima e ao solo da região. A dificuldade está em colocar tudo isso em prática”, aponta.

Às vésperas de sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), um evento internacional que acontecerá no Brasil em novembro de 2025, o governo do Pará parece enfrentar esse dilema. Plantas naturais e ornamentais, fixadas em vergalhões que simulam o formato de árvores, foram instaladas para complementar a arborização de sua capital, Belém. O projeto foi chamado de “jardins suspensos” e tem previsão de somar 180 estruturas até novembro. Vivian Blaso, Especialista em Gestão Responsável para Sustentabilidade e coidealizadora do projeto “Cidades Afetivas”, considera essa iniciativa um equívoco. “Isso demonstra uma falta de planejamento e de visão sistêmica integrada sobre o papel da natureza nas cidades”, argumenta. “O problema não é apenas a instalação de estruturas artificiais, mas o que elas representam: um discurso que valoriza a imagem de sustentabilidade em detrimento de práticas que regeneram, de fato, os territórios, fortalecem a saúde e a relação da população com a natureza viva”, conclui. Ela aponta que tais estruturas podem funcionar melhor como elementos estéticos do que como promotores reais de saúde, bem-estar e mitigação climática.

 

Urbanismo do cuidado: é possível sonhar com cidades que curam?

A provocação de Melody Goodman sobre o impacto do ambiente na saúde ressalta a importância de colocar a promoção da saúde no centro do planejamento urbano. Segundo Paulo Saldiva, esse era justamente o objetivo original do urbanismo, mas o crescimento das cidades desviou esse foco. “O urbanismo nasceu para promover a saúde. A criação dos sistemas de esgoto e o reordenamento urbano, por exemplo, surgiram como resposta direta ao adoecimento da população”, explica. “Hoje, se visa o lucro. Algo precisa ter valor agregado para que seja priorizado”, aponta o médico, que propõe criar incentivos financeiros para soluções que promovam saúde e bem-estar.

“Quando chove forte em São Paulo, a água não tem mais para onde escoar. A impermeabilização do solo faz com que ela vá direto para as ruas, causando inundações. Mas e se, em vez disso, houvesse incentivos para a coleta de água da chuva nos prédios e casas, como desconto no IPTU, por exemplo?”. Ele defende que a criação de reservatórios descentralizados ajudaria a reduzir o impacto das chuvas no sistema público de drenagem, aliviando o estresse hídrico nas cidades e prevenindo problemas de saúde física e mental associados a enchentes e desastres ambientais.

 

“Repensar o desenho urbano é reconhecer que a saúde está na qualidade dos ambientes em que vivemos.”

 

Para Vivian Blaso, transformar o desenho urbano é essencial para tornar os espaços mais saudáveis. “O desenho urbano precisa ser ressignificado a partir de uma perspectiva sistêmica, sensível e afetiva, que considere a cidade como um organismo vivo e interdependente, não apenas como um conjunto de infraestruturas e fluxos funcionais”, diz. Segundo ela, é preciso “planejar espaços que acolham as diversidades socioculturais dos corpos, das culturas e dos modos de vida e que promovam saúde e qualidade de vida não apenas como ausência de doença, mas como bem-estar integral, pertencimento e capacidade de regenerar os vínculos com os outros e com o território”. Vivian destaca que os municípios devem priorizar áreas verdes acessíveis, espaços de encontro e contemplação, corredores ecológicos e trajetos caminháveis que aproximem as pessoas da natureza cotidiana. “Ao mesmo tempo, precisam garantir ambientes seguros, inclusivos e esteticamente cuidados, capazes de estimular a confiança, reduzir a ansiedade climática e gerar sentido de comunidade, religando ao espírito comunitário”, defende.

Em seu discurso no Instituto de Câncer Dana-Farber, Melody Goodman afirmou que o objetivo de seu trabalho com disparidades em saúde é ir além da identificação dos problemas, buscando soluções que construam comunidades saudáveis para todos. Essa visão também aparece na fala de Vivian Blaso, que propõe uma mudança profunda na forma de pensar os centros urbanos – não mais como espaços que adoecem, mas como cidades que curam. “Repensar o desenho urbano é reconhecer que a saúde está na qualidade dos ambientes em que vivemos, na possibilidade dos afetos, no reconhecimento das relações com os outros e na sensação de pertencimento cósmico da nossa relação com o todo. Esse é o ponto de partida para imaginarmos o futuro das cidades e para que os espaços construídos sejam capazes de sustentar a vida em todas as suas múltiplas dimensões”, conclui.

 

Capa. Falta de planejamento urbano e condições precárias dos grandes centros causam série de prejuízos à saúde das populações.
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Divulgação)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Bianca Bosso

Bianca Bosso

Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
1 comment
  1. Onde estão os arquitetoS e urbanistas que não se manifestão sobre estes problemas q vcs tão bem relataram
    IAB, FAU. IPHAN GONDEPHAT.?
    PRA VARIAR. QUEM SOFRE MAIS É O POVO. QUE ESTÁ DE Mãos atadas e anestesiados.

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