Ações para lidar com mudanças no clima precisam garantir que a transição aconteça de maneira justa, focando nas pessoas que mais sofrem com desastres naturais.
Reduzir as desigualdades socioterritoriais e enfrentar a crise climática são dois dos principais desafios que o Brasil precisa enfrentar no século XXI. Como cerca de 85% da população brasileira vive em cidades, esses desafios somente serão enfrentados, com impacto significativo, se as políticas urbanas e ambientais tratarem esses objetivos com prioridade e de forma articulada, pois os eventos extremos causados pelas mudanças climáticas afetam de maneira mais intensa as populações vulneráveis.
As cidades brasileiras apresentam forte desigualdade socioterritorial e não estão preparadas para enfrentar a emergência climática. O modelo de desenvolvimento urbano estruturado no século XX produziu cidades insustentáveis e desiguais, onde os mais excluídos vivem em áreas suscetíveis aos riscos e impróprias para a urbanização. Eles sofrem com os desastres decorrentes dos eventos extremos, cada vez mais frequentes, como as tempestades, secas, insegurança hídrica, elevação do nível do mar, inundações e deslizamentos. (Figura 1)

Figura 1. Rio Acre em seu menor nível desde 1970
(Foto: Pedro Devani/ Governo do Acre. Reprodução)
Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado um aumento significativo de eventos climáticos extremos. Entre 2020 e 2023, houve mais de 7.500 registros de desastres relacionados a chuvas intensas, com um aumento de 222,8% em comparação com a década de 1990. O número total de eventos extremos registrados no Brasil entre 1991 e 2023 ultrapassa 26 mil, afetando 83% dos municípios brasileiros. O desastre em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, e a inundação por mais de um mês de Porto Alegre e de grande parte do Rio Grande do Sul, para citar somente dois exemplos recentes, exemplificam o despreparo das cidades brasileiras para enfrentar a crise climática. (Figura 2)

Figura 2. Deslizamentos após fortes chuvas em São Sebastião (SP)
(Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil. Reprodução)
Mas esse é apenas um dos aspectos desse padrão de urbanização que precisa ser enfrentado e alterado através de adaptação das cidades às mudanças climáticas. A urbanização brasileira está baseada na hiperconcentração em regiões metropolitanas, em uma expansão urbana horizontal ilimitada, que depredou o cinturão verde, mobilidade individual motorizada que priorizou o automóvel, na ocupação das Áreas de Proteção Permanente (fundos de vale e áreas íngremes), no desmatamento nas áreas verdes urbanas, em um processo de desprezo pelo meio ambiente combinado com uma segregação socioterritorial.
Embora o desmatamento e a mudança do solo na área rural ainda liderem a contribuição brasileira para as mudanças climáticas, as cidades são grandes emissoras de gases de efeito estufa. Por isso, elas precisam promover uma transição ecológica e energética, reduzindo as emissões e implementando intervenções necessárias para garantir a proteção da vida frente aos eventos extremos.
Esse esforço precisa estar focado, por um lado, na mobilidade, na construção civil e na gestão dos resíduos, para reduzir as emissões de CO2 e metano e, por outro, em obras de afastamento do risco, no remanejamento da população que vivem em áreas afetadas pelos eventos extremos, na recuperação dos fundos de vales e áreas íngremes, no aumento da permeabilidade do solo e no acesso à habitação social para a baixa renda.
A adaptação das cidades às mudanças climáticas requer um novo modelo de desenvolvimento urbano, com um padrão de ocupação do solo, de mobilidade e de gestão dos resíduos mais responsável, sustentável e justa. Isso significa alterar radicalmente o modo de vida e de gestão das cidades, implicando em mudanças em termos econômicos, políticos, sociais e ambientais.
Obviamente, a transformação radical de um modelo consolidado encontra fortes resistências, tanto dos setores econômicos que se beneficiam dos padrões atuais (indústria automobilística, indústria imobiliária, proprietários de terras, etc.) como dos tomadores de decisões e dos próprios cidadãos, em geral, refratários a mudanças.
“As cidades brasileiras apresentam forte desigualdade socioterritorial e não estão preparadas para enfrentar a emergência climática.”
Não falo apenas dos negacionistas climáticos, mas dos que embora reconheçam a crise climática no discurso (frente as evidências não apenas cientificas, como também da realidade concreta), na prática, não apoiam ou adotam as medidas necessárias para enfrentá-la, pois isso se chocaria com interesses econômicos e políticos, ou exigiria mudanças de hábitos cotidianos. Infelizmente, esses são a maioria da população brasileira.
Nessa perspectiva, o planejamento territorial e urbano e seu desdobramento em programas, projetos e intervenções urbanas precisa ser orientado para promover a transição ecológica, priorizando a questão ambiental e a redução das desigualdades, preparando as cidades para enfrentar a emergência climática.
O modelo urbano a ser promovido é o da cidade compacta e policêntrica, onde a moradia esteja próxima aos serviços e empregos, reduzindo a necessidade de grandes e frequentes deslocamentos e fluxos urbanos, de modo a gerar menor consumo de combustíveis fosseis e, portanto, de emissão de CO2. E que gere uma cidade mais inclusiva, garantindo moradia digna e bem localizada como um direito, elemento fundamental para enfrentar os eventos extremos.
Descarbonizar as cidades
A adaptação das cidades requer uma transição energética para descarbonizar os sistemas urbanos e produtivos e reduzir a emissão dos GEE, com forte intervenção na mobilidade, na construção civil e na gestão dos resíduos sólidos.
“A adaptação das cidades às mudanças climáticas requer um novo modelo de desenvolvimento urbano.”
A mudança na lógica de mobilidade ganha destaque, pois ela contribui com cerca de 60% a 65% das emissões. A emissão de GEE de um mesmo deslocamento de uma pessoa em um carro alcança 1,46 kg de CO2/litro/passageiro, cerca de 19 vezes mais do que o usuário de um ônibus, que gera apenas 0,08 kg de CO2/litro/passageiro. Assim, para promover uma significativa redução no consumo de energia e das emissões, é necessário:
- Um uso mais racional dos veículos e estímulo ao transporte coletivo e à mobilidade ativa (deslocamento a pé em curtas distâncias e uso de bicicleta) que, ademais, ocupam menos espaço no viário da cidade, reduzindo os congestionamentos. O automóvel só deveria ser usado quando é realmente indispensável.
- Financiamento e subsídio à expansão da rede de transporte público (trens, metrôs e VLTs), priorizando a eletrificação da frota de ônibus;
- Estímulo à gradativa adoção de uma matriz energética limpa em todos os modais, sobretudo veículos urbanos de carga (VUCs) e caminhões, com estímulos fiscais e tributários;
- Estímulo à mobilidade ativa, implantando ciclovias, qualificando as calçadas e aumentando a segurança viária.
A transformação da cadeia produtiva da construção civil e sua descarbonização é estratégica. Para tanto, é necessário:
- Fomentar a pesquisa e desenvolvimento tecnológico, inovando em materiais, sistemas construtivos e gestão dos edifícios com baixa emissão de CO2 e de baixo consumo energético. Materiais com o cimento e o aço, sempre que possível, devem ser evitados;
- Incentivo ao retrofit das edificações preexistente, adaptando-as às normas de sustentabilidade, evitando demolições desnecessárias e reduzindo a necessidade de novas estruturas;
- Adotar tecnologias sustentáveis nas novas edificações e, sobretudo, nos programas habitacionais públicos, para garantir a eficiência energética e segurança hídrica, como energia solar, reuso da água, implantação de sistemas locais de tratamento primário de resíduos e esgoto, áreas permeáveis, etc.;
- Induzir a transição e eficiência energética nos serviços urbanos sob responsabilidade do poder público, objetivando, com a utilização de tecnologia, reduzir o consumo e otimizar os recursos necessários à prestação dos serviços como iluminação pública, semaforização, destinação de resíduos sólidos, etc.
Para uma gestão sustentável dos resíduos, é necessário adotar os 5R (recusar, repensar, reduzir, reutilizar e reciclar) na perspectiva de reduzir significativamente as emissões de metano e avançar na meta de Lixo Zero. Embora prevista na Lei e na Política Nacional de Resíduos Sólidos, as iniciativas para reduzir a geração e a destinação dos resíduos para os aterros e lixões e impulsionar, com escala, a reciclagem e a compostagem, não foram implementadas com efetividade na imensa maioria dos municípios. Isso exige uma nova postura do poder público, das empresas de limpeza urbana, do setor produtivo e dos consumidores, na perspectiva de:
- Eliminar os lixões, garantindo uma destinação adequada dos resíduos e promovendo a recuperação energética, por processos biológicos, dos aterros sanitários;
- Ampliar a reciclagem dos resíduos sólidos, fomentando as cooperativas de catadores e as empresas de reciclagem;
- Ampliar a compostagem dos resíduos orgânicos e a sua reutilização na agricultura urbana e periurbana;
- Estimular a criação de consórcios intermunicipais para a gestão de resíduos, promovendo a sustentabilidade dos serviços de manejo, a partir de planos regionais de gestão;
- Rever e ampliar os acordos setoriais de logística reversa para garantir o princípio do gerador-pagador e estimular a transição dos processos produtivos industriais para considerar a destinação final dos resíduos;
- Promover campanhas educativas e publicitárias para difundir os princípios dos 5R e da transição ecológica na destinação dos resíduos.
Adaptar as cidades para enfrentar os eventos extremos
As ações de adaptação e mitigação do clima devem garantir que a transição seja justa, priorizando as parcelas da população que mais sofrem com os eventos extremos, que vivem em áreas de risco e impróprias para a urbanização. Nesse aspecto, a transição ecológica se articula com a redução das desigualdades, na perspectiva de garantir o direito à cidade. Para aumentar a resiliência urbana e adaptar as cidades para enfrentar os eventos extremos, é necessário:
- Financiar intervenções voltadas para a redução de riscos e prevenção de desastres, como obras de drenagem, contenção de encostas, recuperação vegetal e da permeabilidade do solo;
- Integrar os projetos de redução do risco aos planos de urbanização dos assentamentos precários, favelas e comunidades, garantindo moradia definitiva às famílias remanejadas;
- Garantir o atendimento habitacional para a população de baixa renda, com subsídio, localização adequada e construções sustentáveis, evitando novas ocupações em áreas de risco;
- Retomar e ampliar o Sistema Nacional de Prevenção e Resposta a Desastres e Eventos Extremos, aprimorando os serviços de alertas e prevenção;
- Capacitar os governos estaduais e municipais visando a implementação dos sistemas de informação, o monitoramento e a formulação dos planos locais de prevenção ao risco;
- Estruturar as defesas civis municipais, incluindo os Núcleos Comunitários de Defesa Civil, estimulando a organização das comunidades visando à autodefesa e ao protagonismo nas condições de segurança e nos planos de contingência;
- Fiscalizar as condições de segurança das barragens de resíduos da mineração e atuar junto às empresas responsáveis para promoverem as ações necessárias para a prevenção dos riscos.
Garantir a transversalidade nas políticas urbanas e ambientais
A adaptação das cidades precisa ser formulada transversalmente em todas as políticas urbanas, com soluções baseadas na natureza e programas e intervenções que coloquem o meio ambiente no foco do desenvolvimento urbano como meio de melhoria da qualidade urbana. Para tanto, é fundamental:
- Estimular a proteção e recuperação dos mananciais, nascentes e APP, e promover a despoluição dos cursos d’água, rios e represas;
- Ampliar as áreas verdes, livres e protegidas, assim como as áreas permeáveis, para oferecer mais espaços de lazer e gerar equilíbrio climático;
- Garantir a segurança hídrica e uso sustentável da água;
- Estimular a agricultura urbana e periurbana, familiar e orgânica, com assistência técnica, apoio à agroecológica e fomento a circuitos curtos de comercialização, aproximando a produção do consumo e garantindo mercado através das compras públicas;
- Regulamentar o pagamento de serviços ambientais voltado para ações que promovam a melhoria da qualidade ambiental urbana e a transição energética;
A adaptação das cidades às mudanças climáticas exige a capacitação dos entes federados, o financiamento de projetos e obras e o fortalecimento dos sistemas de planejamento territorial. Os planos diretores precisam incluir soluções integradas que respeitem o meio ambiente e que promovam a transição das cidades em direção ao desenvolvimento urbano sustentável.
“As ações de adaptação e mitigação do clima devem garantir que a transição seja justa, priorizando as parcelas da população que mais sofrem com os eventos extremos.”
Sem amplas campanhas de educação ambiental e de mudança de hábitos, não se alcançarão as metas que o Brasil se comprometeu a atingir no seu NDC. Alterar o modelo de desenvolvimento urbano, a cultura do desperdício e o uso irresponsável dos recursos naturais apenas será alcançado quando a sociedade se convencer de que só alterações profundas poderão gerar resultados capazes de enfrentar a crise climática.


