A relevância do ambiente urbano no futuro da agenda climática
A agenda de sustentabilidade apresenta-se como uma peça em vários atos. Dentro dessa grande peça, a biodiversidade e o clima seriam as personagens principais dessa produção. Cada uma delas, como grandes estrelas do espetáculo, possui luz própria para ter suas histórias contadas, mas faz mais sentido quando pensadas juntas. Suas crises existenciais podem ser vistas em separado, mas são todos componentes de uma mesma história que se desenvolveu pela história humana, uma de exploração e consequências. Esse cenário, todavia, se imagina como estabelecido nas florestas e nos centros de produção: mata e indústria como cerne dessa conversa.
O que se imaginaria se a centralidade dessas crises se apresentasse no ambiente urbano, que nas cidades estivessem alguns dos motivos e, necessariamente, o futuro para tratarmos dessas crises?
Essa é a proposta da presente reflexão: como as cidades se tornaram partes da agenda ambiental, principalmente de suas grandes crises: perda da biodiversidade e a emergência climática. Ao fazermos uma digressão histórica, é relevante entender o quanto o espaço das cidades, como espaço de implementação de ações internacionais, mudou em pouco tempo. Desde o Tratado de Westfalia, acordo internacional que, ao finalizar um dos mais sangrentos conflitos europeus até então, assentou as regras do que chamamos de ordem internacional baseada nos Estados-Nação. Essa ideia de que territórios extensos que tivessem o monopólio do uso da força, única moeda e leis únicas sendo aplicadas seriam a regra do ator do espaço internacional não era a regra até então, mas foi a forma mais bem adaptada para a realidade do ambiente de pressão internacional.
Se as cidades-estados europeias, assim como pequenos principados que tinham sua centralidade em cidades muradas ao longo da Idade Média europeia, perderam seu espaço, esse se deu por motivos práticos claros para a época. Ao consolidar o espaço territorial, os novos Estados estariam garantindo maior território para a produção de alimentos e maior população para produzir e lutar em suas guerras. Isso porque a população global estava, em sua grande maioria, vivendo no campo.
Ao longo do tempo, em especial pelas necessidades de concentração de população para a produção industrial, mais fácil de ser operada em centros urbanos, essa tendência da importância da relação campo versus cidade começa a se inverter no ambiente doméstico dos países. Ocorreu o aumento da população nas cidades, assim como a concentração de renda dos países nos centros urbanos.
Justamente com o processo de industrialização, motor dos movimentos climáticos que hoje nos colocam frente à emergência climática e às explorações que aceleraram a perda global de biodiversidade, as cidades começaram seu renascimento como centros políticos. Nos países do Norte global, onde a industrialização se acelerou em primeiro lugar, a centralização de população e capital já inseriu os ambientes urbanos nessa órbita de centralidade política ao longo do século XX. Essa situação foi se expandindo globalmente, com especial menção para a América Latina, que alcançou o posto de continente mais urbanizado do mundo ao fim desse mesmo século.[1]
Entretanto, ao longo de um século com duas grandes guerras e uma grande instabilidade internacional com a Guerra Fria, assim como no processo de descolonização, a regra foi de um regime internacional focado na securitização. Somente no início dos anos 1990, com um sistema que se afastava desses elementos de instabilidade, diversos temas não securitários puderam se fazer presentes no cenário internacional.
“As cidades não são apenas vítimas da crise climática: são também parte da solução.”
Dessa forma, os anos 1990 se tornaram a “década das conferências”, uma espécie de desbloqueio do sistema internacional para tratar temas relevantes que estavam sendo bloqueados por décadas de pautas focadas na inação das duas grandes potências e um sistema internacional que era utilizado para criar uma estabilidade controlada de grandes conflitos armados, mas que não avançava em temas mais que relevantes.
Um desses temas consiste na sustentabilidade e o meio ambiente. A 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio 92, foi um marco desse novo ciclo de agendas internacionais. Essa conferência apontou o reconhecimento dos governos subnacionais, através da identificação de governos locais e regionais, como parte dos grupos reconhecidos (constituencies, na sua expressão em inglês) que representam atores relevantes como partes do processo de negociação continuada das Conferências do Rio.
Desse momento em diante, com a sequência de uma lista cada vez maior de entidades para representar esses governos subnacionais na pauta da sustentabilidade (e.g., ICLEI – Governos Locais pela Sustentabilidade, C40) ou para implementar projetos com governos locais (e.g., WRI), os governos subnacionais, especialmente as cidades, chegaram ao final do século XX com maior visibilidade como parte do ecossistema internacional que promove o debate e o engajamento com os temas da sustentabilidade (esfera política) e no espaço de testar soluções (esfera da implementação).
Nesses pouco mais de 30 anos, contudo, da mesma forma com a qual os avanços em todas as frentes de promoção de uma agenda de sustentabilidade mais efetiva tiveram poucos avanços, a presença das cidades nesse processo também deixou a desejar, tanto na esfera política quanto na implementação. Muito se deve às dificuldades da agenda internacional, que, depois de alguns anos de liberalismo internacionalizante, teve suas ordens de prioridade (combate ao terrorismo internacional, crise econômica e recrudescimento de conflitos internacionais) reposicionadas, afastando-se de pautas de integração internacional.
Outro ponto deve-se a uma certa incompreensão da centralidade das cidades como espaço de solução dos problemas das duas grandes crises ambientais. Agora desenvolveremos mais esse tópico.
As crises e suas conexões urbanas
Se a conexão entre as crises e o urbano é clara, por muito tempo a visão brasileira não promoveu essa conexão. No Brasil, existe um espaço de reflexão que indica que as emissões brasileiras, pesadamente alocadas pelo desmatamento e demais modificações do uso do solo (AFOLU, em sua sigla em inglês), são centradas no processo de expansão da agricultura e pecuária nos últimos 40 anos no país. De igual forma, a degradação do bioma brasileiro mais deteriorado, a Mata Atlântica, também aponta para o processo de expansão da agricultura e extrativismo na região costeira brasileira nos primeiros três séculos de ocupação do território brasileiro.
“A centralidade urbana revela que biodiversidade e clima não podem mais ser pensados como questões distantes do cotidiano.”
Todas as informações acima são corretas. Entretanto, o afastamento do espaço urbano como central nas questões de mitigação climática e perda da biodiversidade surge, em nossa avaliação, como uma limitação, quiçá um equívoco com graves consequências.
Perceber que as cidades não estão conectadas com o desmatamento e a extensão da fronteira rural improdutiva no Brasil assenta-se no pensamento de que os vetores de produção utilizam pessoas que estão no ambiente rural para assim implementar seus atos predatórios. Contudo, mais de 70% da população da região amazônica, assim como 87% da população brasileira como um todo, vive em cidades. Se alternativas de trabalho e renda, assim como uma rede social que condicione o suporte e atenção às famílias a práticas de efetivo manejo sustentável, podem e devem cumprir um papel fundamental para que ações de convivência dos indivíduos com a natureza não sejam somente calcadas em fiscalização e repressão. Convivemos no Brasil por períodos de efetiva fiscalização, campanhas e engajamento do Estado contra as ações mais responsáveis pelas emissões brasileiras,[2] aquelas que colocam o país entre os maiores emissores globais de gases de efeito estufa. (Figura 1)

Figura 1. Cidades brasileiras já sentem o impacto das mudanças climáticas
(Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil. Reprodução)
De igual forma, passamos por períodos nos quais governos estaduais e federais foram omissos e negligenciaram seu papel de fiscalização. Quando essa posição do Estado falha, ocorre um verdadeiro incentivo para a devastação florestal. Esse movimento de estrangulamento esporádico do Estado não garante a sustentabilidade de políticas tão vitais para a realidade da crise que vivemos. As pessoas tornam-se partes desses processos de exploração pelo simples fato de que não possuem alternativas consequentes de trabalho e renda. Considerando que essas pessoas, mesmo quando engajadas com ações em territórios florestais, vivem e possuem conexão com cidades, as soluções devem aportar para melhora da condição de vida dessas pessoas nas cidades.
E, explorando mais o tema da mitigação das emissões, se o Brasil conseguir realmente abrandar as emissões por AFOLU, as categorias de emissões mais significativas (energia e resíduos) estão profundamente conectadas com as cidades e a maneira de gerir e planejar o espaço urbano.
A perda da biodiversidade em países como o Brasil também está pesadamente conectada com o espaço urbano. A concentração populacional nos centros urbanos da costa brasileira ocasionou, ao longo dos quinhentos anos de ocupação do território brasileiro, a devastação do bioma da Mata Atlântica, com apenas 10% de sua cobertura original ainda sendo preservada ou recuperada.[3]
As crises e seu futuro urbano
Se os temas conectados com a mitigação climática e a perda da biodiversidade não fossem suficientes para alocar as cidades como parte da solução para os motivos das crises as quais a humanidade está enfrentando, os extremos que a humanidade já está vivendo apontam que cidades possuem um dever de estarem no centro dos processos de adaptação climática.
Se falarmos sobre as expectativas que cientistas do IPCC possuíam quando da Rio 92 e seus anos iniciais de implementação, poderíamos pensar que estaríamos enfrentando uma grande agenda internacional de mitigação às causas de um “aquecimento global” que tentaríamos evitar. Esse futuro não teria suas mudanças em nossas vidas antes de meados do século, e nosso trabalho, como civilização, seria impedir seus efeitos mais nefastos. Com esse fracasso já devemos saber conviver, pois os efeitos que não deveríamos ver em nosso tempo de vida já acometem o planeta inteiro.[4]
Modificação do regime de chuvas, com estiagens mais longas e chuvas mais intensas; constituição de fenômenos climáticos extremos em locais que nunca os haviam registrado; zoonoses atípicas, devidas à modificação do padrão hídrico, das temperaturas e da perda da biodiversidade; ilhas, zonas e ondas de calor… A lista de riscos climáticos é extensa e provida de tons apocalípticos.[5] (Figura 2)

Figura 2. Políticas públicas ainda são falhas em proteger o meio ambiente e garantir cidades saudáveis e resilientes frente às mudanças climáticas
(Foto: Rede Nossa São Paulo. Reprodução)
É esse ponto que reforça cada vez mais o argumento da centralidade das cidades na pauta das crises globais: as pessoas sentem esses extremos onde elas vivem, e nosso mundo está cada vez mais urbano. Desde que o mundo passou a ter a maioria da sua população nas cidades, em 1998,[6] essa tendência somente aumenta, com a taxa global sendo atualmente de 55%, com projeções de que a população urbana deve ser de aproximadamente 70% em 2050.[7]
Em países do Norte global, existe uma cada vez maior necessidade de adaptar as infraestruturas urbanas para fornecerem condições mais adaptadas para os extremos que já acometem essas cidades. O ponto mais complexo em cidades do Sul global consiste em que essas já não possuíam uma infraestrutura adequada e são pressionadas a se adaptarem com uma base mais frágil. Cria-se a necessidade de avançar rápido e de maneira mais inovadora nesses espaços.
Provavelmente, serão as cidades um foco não somente relevante, como necessário nesse momento no qual nos encontramos na implementação da agenda internacional das crises climática e de perda da biodiversidade. Isso porque o sistema internacional com o qual temos convivido nos últimos 80 anos está em complexa instabilidade.
“Governar as crises ambientais exige transformar cidades em espaços de inovação, adaptação e justiça socioambiental.”
A guerra na Ucrânia, o massacre em Gaza, diversos conflitos em todo o mundo, todos demonstram uma erosão da capacidade internacional de converter princípios em ação. Soma-se a um espaço econômico que ainda não se recuperou da pandemia da COVID-19 e a instabilidade que o maior garantidor da atual ordem internacional, os Estados Unidos, está agregando a esse sistema, podemos concluir que vivemos em um momento complexo para enfrentar a crise que estamos vivendo, e viveremos pelas próximas várias décadas.
Claramente, precisaremos usar o combate a essas crises, globais em efeitos e em escala de extensão, para direcionar instâncias internacionais capazes de congregar esforços internacionais. Entretanto, será fundamental ter em cidades um ponto mais seguro de implementação continuada. Onde o pragmatismo dos atores que tratam com a vida do seu concidadão de forma mais próxima pode auxiliar um sistema, necessariamente internacional em recursos e esforços, a entregar as ações que precisam ser realizadas nos territórios.
Capa. A interação entre cidades e clima exige ações de adaptação e mitigação para reduzir as emissões de gases e aumentar a resiliência urbana.
(Foto: Ibirapuera. Arquivo)



1 comment
Pensar em inovações no espaço urbano para a convivência com os efeitos da Emergência Climática é estratégico e inarredável sob todos os aspectos. Quando se pensa em Justiça Climática não se pode ignorar as milhões de pessoas no Brasil que vivem em habitações subnormais, sem coleta e tratamento de esgoto, sem oferta de água potável de qualidade, sem coleta de resíduos, sem transporte, sob ameaça constante da violência do crime organizado e do Estado, enfim há miríade de problemas a serem enfrentados e resolvidos, mas que perpassam necessariamente pela escolha dos nossos representantes, tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo nos 3 níveis federativos.