Como o encontro com os povos indígenas transformou um jovem filósofo belga no pai da antropologia estrutural
Por volta das quatro da tarde, em um domingo de outono de 1934, um telefonema mudaria os rumos da história da antropologia. Do outro lado da linha, Célestin Bouglé, então diretor da Escola Normal Superior de Paris, perguntava ao jovem filósofo Claude Lévi-Strauss se ele ainda se interessava por etnografia. Diante da resposta entusiasmada — “Sem dúvida!” — veio o convite: candidatar-se a uma vaga como professor da recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Segundo Bouglé, nos arredores da cidade havia muitos índios que poderiam ser estudados nos fins de semana.
Dias depois, no entanto, Lévi-Strauss ouviu o contrário do embaixador do Brasil em Paris, Luís de Sousa Dantas: os indígenas, segundo ele, já haviam desaparecido. Entre o otimismo do primeiro e o ceticismo do segundo, o professor embarcou rumo ao Brasil em 1935, aos 27 anos, para lecionar Sociologia na USP. E foi aqui que encontrou, não apenas as populações indígenas vivas e vibrantes, mas a própria vocação. “O Brasil é a experiência mais importante da minha vida”, declararia ele décadas depois.
O nascimento de um etnólogo
Entre 1935 e 1939, em dois períodos, Lévi-Strauss viveu no Brasil ao lado de sua esposa e outros colegas franceses. Em suas férias, organizou expedições para conhecer diferentes etnias: os cadiuéu, bororo, tupi-kaguahib, nambiquara, entre outros. Sua primeira publicação com base nessas experiências foi Família e vida social dos índios nambiquara (1948), mas foi em Tristes Trópicos, publicado em 1955, que o mundo conheceu a força literária e intelectual de suas reflexões.

(Foto: Reprodução)
O livro tornou-se um clássico instantâneo. Com uma escrita híbrida entre ciência e literatura, Lévi-Strauss apresenta observações sobre ritos, mitos, estruturas sociais e cosmologias dos povos indígenas brasileiros. Apesar de começar com a célebre frase “Eu detesto as viagens e os exploradores”, a obra descreve com intensidade as jornadas do autor por Mato Grosso e Amazônia — e também pela Índia e pelo Paquistão, onde atuou pela Unesco.
A partir dessas experiências, o pensador formulou a ideia de que, apesar das imensas diferenças culturais, certos princípios estruturais do pensamento são universais. A interdição do incesto e a lógica dos opostos — como quente e frio, bom e mau — apareciam tanto em sociedades indígenas quanto nas urbanas ocidentais. O que ele chamaria de “pensamento selvagem” não seria primitivo ou inferior, mas outra forma sofisticada de se relacionar com o mundo: menos abstrata, mais sensível ao meio ambiente.
Um alerta precoce
“Tristes Trópicos” também soou como um alerta — poético e crítico — sobre os rumos da humanidade. Lévi-Strauss denunciava, já nos anos 1930, a devastação cultural e ecológica causada pela modernização desenfreada. “Hoje, a humanidade se instala na monocultura, se prepara para produzir a civilização em massa, como se se tratassem de beterrabas”, escreveu.
“Lévi-Strauss denunciava, já nos anos 1930, a devastação cultural e ecológica causada pela modernização desenfreada.”
Essa sensibilidade rendeu-lhe o reconhecimento não só como fundador da antropologia estrutural, mas como um dos primeiros intelectuais a perceber e denunciar os impactos da homogeneização cultural e da degradação ambiental. “Sociedades arcaicas são superiores a nós”, diria, segundo o filósofo Axel Honneth, “por estarem muito mais conscientes do entrelaçamento com a natureza.”
O Brasil no coração
Lévi-Strauss nunca esqueceu o país que o acolheu e inspirou. Embora tenha se decepcionado com as cidades brasileiras — chamou São Paulo de uma cidade que “vai do frescor à decrepitude sem passar pelo antigo” e descreveu a baía de Guanabara como uma “boca desdentada” — foi nas aldeias que encontrou beleza e profundidade.

(Foto: Reprodução)
O cineasta e antropólogo Marcelo Fortaleza Flores, que dirigiu o documentário “Trópico da Saudade – Claude Lévi-Strauss e a Amazônia”, lembra que o francês seguiu atento ao Brasil até o fim da vida. Mesmo sem retornar a campo, lia a produção da antropologia brasileira com admiração. Flores, que viveu entre os nambiquaras e refilmou a expedição de 1938, considera aquele momento uma “guinada na antropologia moderna”.
Entre os autores brasileiros que Lévi-Strauss acompanhava estavam Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro. Em 2008, aos 98 anos, o pensador publicou uma resposta a um antropólogo americano que criticava suas ideias — prova de sua vitalidade intelectual e de sua fidelidade a uma visão de mundo construída a partir do Brasil.
Legado e reconhecimento
Lévi-Strauss faleceu pouco antes de completar 101 anos. Foi homenageado por líderes políticos, intelectuais e instituições no mundo todo. O presidente francês Nicolas Sarkozy saudou-o como um “humanista infatigável”, e pesquisadores brasileiros lembraram a importância de sua obra para a valorização das culturas indígenas e para a fundação da antropologia moderna.
“Suas ideias seguem influenciando, décadas depois, uma nova geração de pensadores, ativistas e defensores da diversidade cultural.”
Beatriz Perrone-Moisés, professora da USP, comentou que Tristes Trópicos revelava “um mundo dos sentidos muito especial” — o Brasil dos índios e a emoção de seguir os rastros dos antigos exploradores. Gilberto Velho, outro importante antropólogo brasileiro, destacou que Lévi-Strauss não apenas revolucionou a antropologia, mas também ensinou que “não há sociedades inferiores, e cada uma deve ser compreendida em seus próprios termos”.
O filósofo belga que virou antropólogo francês veio ao Brasil como um jovem professor em busca de etnografia — e saiu transformado. Suas ideias seguem influenciando, décadas depois, uma nova geração de pensadores, ativistas e defensores da diversidade cultural. Afinal, como ele próprio escreveu, as diferenças humanas não nos separam tanto quanto imaginamos. No fundo, somos mais parecidos do que pensamos.
Capa. Levi-Strauss no Brasil. Reprodução


