Confira entrevista com Nelzair Araujo Vianna, pesquisadora em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/BA).
Ciência, gestão e engajamento comunitário. Essa é a combinação que Nelzair Araujo Vianna, pesquisadora em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/BA), utiliza para enfrentar desafios urbanos ligados à saúde e ao clima. Com mais de uma década dedicada à Vigilância e Saúde Ambiental, ela liderou projetos como SOPRAR Salvador e PlanetAR, que investigam a poluição do ar e seus impactos na saúde humana, sempre em colaboração com universidades e centros de pesquisa. “O ar poluído é um fator invisível, mas poderoso e essencial, que atravessa a vida cotidiana e agrava doenças crônicas e agudas”, alerta a pesquisadora. Doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina da USP, atua como fiscal da SMS Salvador e coopera com a Secretaria de Sustentabilidade e Resiliência da cidade, integrando o GT C40. Líder Climática formada e cofundadora do Fórum de Energia e Clima, coordena a Câmara Temática de Saúde no Painel Salvador de Mudança do Clima e representa a capital baiana na rede internacional de qualidade do ar do C40. Nesta entrevista, ela compartilha sua visão sobre saúde, cidades e mudanças climáticas, apontando caminhos para cidades mais resilientes e sustentáveis. “Descobrimos que os bairros mais vulneráveis eram justamente aqueles expostos a maiores concentrações de poluentes, revelando uma sobreposição entre poluição, desigualdade social e vulnerabilidade em saúde”, pontua.
Ciência & Cultura – Sua trajetória conecta saúde pública, meio ambiente e justiça climática. O que a levou a focar sua pesquisa na relação entre poluição do ar e saúde humana? Houve algum momento decisivo nessa escolha?
Nelzair Araujo Vianna – Minha trajetória sempre esteve marcada pelo desejo de compreender como os determinantes ambientais influenciam a saúde das populações. Desde o início da minha formação em Farmácia e Bioquímica, percebi que muitas doenças tinham uma relação pouco explorada com o ambiente em que as pessoas viviam e que o próprio setor saúde também produzia muitos danos pela falta de gerenciamento de resíduos em seus processos. Isso era algo alarmante para mim nos laboratórios por onde passei. Concluí a graduação com a certeza de que buscaria outras formações para abordar o tema da exposição ambiental, que tanto saltava aos meus olhos. Fiz especialização para estudar resíduos de serviços de saúde.
O momento decisivo aconteceu quando comecei a trabalhar como fiscal na área de Vigilância em Saúde Ambiental e passei a observar comunidades impactadas pela poluição atmosférica e a necessidade de implementação de ações de vigilância relacionadas à qualidade do ar. Passei a desenvolver ciência no contexto da ação, dedicando-me a estudos de análise de riscos sobre poluição do ar em Salvador, em busca de evidências científicas para a tomada de decisão. Fiz mestrado e doutorado nessa linha. Percebi que o ar poluído era um fator invisível, mas poderoso e essencial, que atravessava a vida cotidiana e contribuía para agravar doenças respiratórias, cardiovasculares e outras condições crônicas e agudas. Essa constatação me levou a unir saúde pública, meio ambiente e justiça climática como eixo central da minha pesquisa. Hoje, acredito que só é possível compreender de forma plena o processo saúde-doença quando integramos fatores sociais, econômicos, ambientais e culturais — e a poluição do ar é uma das expressões mais fortes dessa interconexão. Nossos estudos têm contribuído para a criação da agenda climática que temos hoje em Salvador, subsidiando decisões importantes para mitigar a poluição do ar, como melhorias no transporte público com veículos de baixa emissão.
“Levar nossa experiência para um fórum internacional significa colocar na mesa global a realidade das cidades do Sul Global, muitas vezes à margem das grandes negociações sobre clima.”
C&C – Você coordenou os projetos SOPRAR Salvador e PlanetAR, que integram ciência, política e participação social. Quais os principais resultados e aprendizados dessas iniciativas para a saúde das populações urbanas?
NAV – O projeto SOPRAR Salvador nos permitiu utilizar um modelo matemático baseado em inventário de emissões para monitorar a qualidade do ar, gerando informações inéditas para identificar desigualdades ambientais entre a região de Salvador e a área metropolitana. Descobrimos que os bairros mais vulneráveis eram justamente aqueles expostos a maiores concentrações de poluentes, revelando uma sobreposição entre poluição, desigualdade social e vulnerabilidade em saúde. Esse foi um marco importante para iniciar o debate público sobre o tema na cidade. Já o PlanetAR trouxe um caráter inovador. Além do monitoramento do ar com sensores de baixo custo em áreas de vulnerabilidade socioambiental, desenvolvemos ferramentas de campo para a formação médica. Com a imersão de estudantes em territórios vulneráveis, conseguimos mostrar na prática como a poluição do ar, a falta de saneamento e os efeitos das mudanças climáticas afetam populações que já vivem em situação de injustiça social. O grande aprendizado foi confirmar que ciência de qualidade pode — e deve — ser feita em diálogo com as comunidades, respeitando saberes locais e construindo soluções de forma colaborativa.
C&C – Como cofundadora do Fórum de Energia e Clima e integrante de redes como o C40, você atua ativamente na interface entre ciência e políticas públicas. Como é representar Salvador nesses espaços internacionais?
NAV – Representar Salvador em espaços como a rede internacional de qualidade do ar do C40 é uma honra e também uma responsabilidade. Salvador é uma cidade marcada por desigualdades históricas, mas também por grande mobilização social. Conseguimos tornar Salvador uma cidade signatária do Ar Limpo, com metas a serem alcançadas. Levar nossa experiência para um fórum internacional significa colocar na mesa de discussão global a realidade das cidades do Sul Global, que muitas vezes ficam à margem das grandes negociações sobre clima.
Ao mesmo tempo, participar dessas redes me permite trazer de volta para Salvador exemplos concretos de políticas inovadoras adotadas em outras cidades do mundo, como programas de transporte limpo, a expansão de áreas verdes para melhoria da qualidade do ar e a necessidade de sistemas de monitoramento permanente da poluição atmosférica. Essa troca de experiências é fundamental para acelerar soluções locais e adaptar modelos globais à nossa realidade brasileira. O Fórum de Energia e Clima é um poderoso movimento de países de língua portuguesa que já reúne mais de 4 mil membros. Ser cofundadora desse fórum foi a oportunidade de fazer parte de uma aliança que mobiliza diferentes setores — sociedade civil, ciência, governo e setor privado — em prol de uma única causa: acelerar a grande transição energética de que o mundo precisa.
“São 7 milhões de mortes prematuras ao ano por poluição do ar — mais do que tuberculose, malária e HIV somados.”
C&C – A poluição do ar é muitas vezes uma “crise invisível” nas cidades. Quais os desafios para tornar esse tema mais presente nas agendas públicas e na conscientização da população?
NAV – A poluição do ar é um dos maiores desafios da saúde pública contemporânea justamente porque não pode ser vista. Diferente da água turva ou do lixo acumulado, o ar poluído não tem cor ou cheiro evidentes — e, por isso, muitas vezes não desperta preocupação imediata. O resultado é que milhões de pessoas respiram diariamente um ar que adoece sem perceberem. São 7 milhões de mortes prematuras ao ano — mais do que tuberculose, malária e HIV somados. O impacto da poluição do ar só é comparável ao tabaco. O desafio está em transformar dados técnicos em informações acessíveis para a população e gestores. Precisamos mostrar que a poluição do ar não é apenas uma questão ambiental, mas também econômica e de saúde: ela aumenta internações hospitalares, pressiona o sistema público e reduz a qualidade de vida. Tornar essa “crise invisível” visível requer comunicação clara e transversal, com campanhas educativas e integração com políticas públicas de mobilidade, energia e urbanismo.
C&C – Você também é coordenadora da câmara temática de saúde no Painel Salvador de Mudança do Clima. Que estratégias estão sendo desenvolvidas para articular ciência, comunidades e governo no enfrentamento dos impactos climáticos na saúde?
NAV – A Câmara Temática de Saúde do Painel Salvador de Mudança do Clima tem como objetivo construir pontes entre ciência, governo e comunidades, no mesmo modelo do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), mas em escala local. Uma das estratégias é desenvolver indicadores específicos que mostrem, por exemplo, como o aumento das temperaturas, as chuvas intensas e a poluição do ar já estão afetando a saúde da população. Isso ajuda a traduzir os impactos climáticos em dados que gestores possam usar para planejar ações de mitigação e adaptação. Outro ponto central é o diálogo direto com as comunidades, especialmente aquelas que vivem em áreas mais vulneráveis. Realizamos oficinas participativas em que moradores compartilham suas experiências e percepções sobre os impactos ambientais. Esse conhecimento comunitário é essencial para orientar políticas mais justas, que respondam às necessidades reais da população.
“A ciência precisa de resiliência e, sobretudo, de mais diversidade de vozes para enfrentar uma crise tão complexa como a climática — e isso inclui a força das mulheres cientistas.”
C&C – Que conselhos daria a jovens cientistas — especialmente mulheres — que desejam atuar na interseção entre ciência, política ambiental e justiça social?
NAV – Aos jovens cientistas, eu diria: não tenham medo de trilhar caminhos interdisciplinares. As respostas para os grandes desafios do nosso tempo — mudanças climáticas, poluição, desigualdade — não cabem em uma única área de conhecimento. É justamente nas interseções entre ciência, política e sociedade que surgem as soluções mais criativas e transformadoras. Para as mulheres, o conselho é ainda mais enfático: ocupem os espaços de decisão e não se silenciem diante das barreiras. Ainda vivemos em um meio onde lideranças científicas e políticas são marcadas por desigualdades de gênero, mas cada vez que uma mulher se coloca como protagonista, abre caminho para outras. A ciência precisa de resiliência e, sobretudo, de mais diversidade de vozes para enfrentar uma crise tão complexa como a climática — e isso inclui a força das mulheres cientistas.


