Como conciliar cidades e biodiversidade diante das mudanças climáticas
Vivemos um paradoxo: embora dependamos de milhares de formas de vida que compõem a biodiversidade, as atividades humanas têm ameaçado essa riqueza natural suprimindo habitats e levando à extinção milhares de espécies.[1, 2] A destruição de habitats gera desequilíbrios e degradação ambientais, proliferação de doenças e invasões bióticas, expondo a humanidade a riscos que podem resultar na perda de inúmeras vidas. O que se perde por extinção é irrecuperável, mas ainda é possível mitigar danos, criando condições para a sobrevivência dos ecossistemas remanescentes e para a (re)criação de habitats.
A proteção da biodiversidade é, portanto, fundamental. Mas será possível conciliar esse esforço nas cidades? As cidades podem se tornar ecologicamente viáveis para a biodiversidade, criando e protegendo habitats?
De acordo com Wilson,[3] a biodiversidade corresponde à multiplicidade de formas de vida que habitam a Terra — incluindo organismos microscópicos, plantas e animais — e se expressa em diferentes dimensões: genética, de espécies, de ecossistemas e nas interações ecológicas que asseguram o equilíbrio dos ambientes. Podemos incluir ainda os arranjos das paisagens e o patrimônio natural como expressões espaciais dessa diversidade.
Esse conceito envolve toda a vida no planeta, inclusive os seres humanos, que ao longo de sua história moldaram a natureza, dando origem ao que se denomina sociobiodiversidade e agrobiodiversidade. A sociobiodiversidade é a ligação entre a diversidade biológica e a diversidade sociocultural. Toda a vida está interligada e interdependente em múltiplas escalas, o que torna a conservação uma estratégia essencial para manter os ecossistemas e suas funções vitais: fornecimento de alimentos, água e medicamentos, regulação climática, purificação do ar, polinização e controle de pragas, entre outros.
“As cidades não são inimigas da natureza: podem ser refúgios de biodiversidade se planejadas de forma integrada e inclusiva.”
Entretanto, as atividades humanas têm acelerado a degradação, especialmente nos séculos XX e XXI. Isso exige ações urgentes de conservação para frear a perda de habitats e ampliar a sobrevivência dos seres vivos. Alguns conceitos aplicados às cidades vêm sendo desenvolvidos no sentido de enfrentar seus desafios.[4]
No século XX, diferentes abordagens buscaram integrar natureza e urbanização. No campo científico e político, surgiram metáforas que ajudaram a traduzir a importância da natureza nas cidades: florestas urbanas (FU), serviços ecossistêmicos (SE), infraestrutura verde (GI) e, mais recentemente, soluções baseadas na natureza (SBN).[5] (Figura 1)

Figura 1. Com a expansão urbana das grandes cidades, os animais, como as capivaras, são exemplo de sobrevivência que sensibiliza pessoas.
(Foto: Uninter. Reprodução)
Esses conceitos não são excludentes e representam uma sequência de alternativas que vêm sendo gestadas há muito tempo. A arborização urbana, por exemplo, historicamente articulou saberes de várias disciplinas para maximizar os benefícios das árvores nas cidades a custos não tão dispendiosos. Hoje, ela se conecta às SBN, à infraestrutura verde e aos serviços ecossistêmicos, oferecendo ferramentas concretas para enfrentar os desafios urbanos. Mas, apesar de muitos esforços, a urbanização enfrenta desafios que concorrem com a capitalização de todos os espaços urbanos, dificultando soluções ambientais que ajudem a minimizar os efeitos de emergências climáticas.
Estimativas recentes da ONU-HABITAT apontam que a população urbana já ultrapassa os 4 bilhões de pessoas, ou seja, mais da metade dos habitantes do planeta.[6] As projeções indicam que esse percentual deve atingir cerca de 68% até 2050, reforçando a urgência de pensar políticas urbanas que conciliem crescimento populacional e conservação ambiental. O relatório Cidades Mundiais 2024 trata das mudanças climáticas que já estamos vivendo e da urgência de medidas para tornar as cidades menos perigosas e desiguais, indicando que as cidades estão à frente das abordagens inovadoras e coordenadas por comunidades, que demonstram capacidade de criar processos colaborativos e inclusivos para a ação climática.[7]
“O paradoxo urbano revela que a mesma urbanização que degrada também pode criar oportunidades de regeneração ecológica.”
Além disso, muitas cidades ainda conservam fragmentos naturais de cobertura vegetal relevantes. São Paulo, por exemplo, abriga em seu território 30% de remanescentes de Mata Atlântica, cerrados e campos, embora distribuídos de forma desigual. Outras soluções vêm sendo apontadas em estudos urbanos, como quintais residenciais, jardins drenantes, parques e praças que podem funcionar como refúgios para fauna e flora, desde que planejados com espécies nativas e integrados em corredores ecológicos.
Estratégias para as cidades biodiversas
Entre as experiências em curso estão as microflorestas (como as “florestas de bolso”), inspiradas no método Miyawaki,[8] a renaturalização de rios e áreas verdes,[9] a arborização com espécies nativas e o fortalecimento de corredores ecológicos.[10] Tais estratégias ampliam a biodiversidade, aumentam a resiliência climática e reduzem desigualdades socioambientais. (Figura 2)

Figura 2. Microflorestas estão entre as estratégias para as cidades biodiversas.
(Foto: Prefeitura de Campinas. Reprodução)
Essas soluções dependem, no entanto, de dois fatores fundamentais: a integração ao planejamento urbano e ambiental com políticas públicas consistentes, e a educação ambiental com participação social, por meio de projetos comunitários e escolares que envolvam as comunidades nos problemas e soluções locais no espaço urbano.
Cidades podem e devem ser planejadas de forma a reconciliar sociedade e natureza, tornando-se ecologicamente sustentáveis, economicamente produtivas, socialmente justas e culturalmente vibrantes. Políticas de educação ambiental são essenciais nesse processo.
Por outro lado, ferramentas de planejamento como o Índice de Biodiversidade das Cidades (IBC) permitem avaliar a biodiversidade urbana, considerando indicadores sobre espécies nativas, serviços ecossistêmicos e governança. Algumas cidades do mundo têm adotado esse índice como referência para o planejamento de áreas verdes. Em São Paulo, esse monitoramento é feito desde 2019 pelo BioSampa, instrumento da Prefeitura Municipal que acompanha 23 indicadores de biodiversidade, serviços ecossistêmicos e governança ambiental.[11] O BioSampa adota o City Biodiversity Index (Singapore Index),[12] metodologia internacional recomendada pela Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, que possibilita comparar a realidade paulistana com a de outras cidades globais. Os resultados oferecem subsídios técnicos para o planejamento de estratégias de conservação e recuperação ambiental em escala municipal e regional.
Por outro lado, esse modo de produzir política também precisa ser compartilhado com a sociedade. Estudos em cidades brasileiras, como São José dos Campos (SP),[13] revelaram avanços em biodiversidade e cobertura vegetal, mas também desafios relacionados à governança, orçamento reduzido e carência de ações educativas de longo prazo. Uchiyama e Kohsaka [14] avaliaram a aplicação do IBC e concluem que os resultados são positivos para a biodiversidade nativa, mas apresentam deficiências na proteção de serviços ecossistêmicos e na governança de um modo geral.
Soluções baseadas na Natureza e mudanças climáticas
As soluções baseadas na natureza (SBN) despontam como alternativas para mitigar efeitos extremos, ao mesmo tempo em que criam habitats. Com a intensificação das mudanças climáticas, as cidades serão cada vez mais impactadas. Entre as iniciativas de SBN, destacam-se jardins de chuva, telhados verdes, parques lineares e experiências de agricultura urbana. Essas ações mobilizam processos ecológicos para reduzir riscos, regular temperatura e melhorar a qualidade da água e do ar.[15, 16]
“Reconstruir o elo entre sociedade e natureza é condição essencial para enfrentar a crise climática no espaço urbano.”
Na América Latina, iniciativas de renaturalização de rios — como as desenvolvidas em cidades colombianas — evidenciam tanto avanços em termos de recuperação ambiental quanto dilemas sociais, já que podem gerar processos de gentrificação e acentuar desigualdades territoriais se não forem acompanhadas por políticas inclusivas.[17]
Considerações finais
O Brasil, que abriga entre 15% e 20% da biodiversidade mundial, tem enorme potencial para integrar conservação e urbanização. A biodiversidade urbana não se restringe a áreas legalmente protegidas: está presente em praças, jardins, quintais, hortas e fragmentos florestais.
O planejamento ambiental, aliado à arborização estratégica e ao uso de espécies nativas, pode transformar as cidades em espaços mais verdes, resilientes e biodiversos. Ferramentas como o Índice de Biodiversidade das Cidades (IBC), já aplicadas em cidades brasileiras, oferecem parâmetros importantes para orientar políticas públicas. Frente à urbanização crescente e às mudanças climáticas, reconciliar sociedade e natureza nas cidades não é apenas desejável, mas essencial para garantir qualidade de vida e sustentabilidade ecológica.
Capa. As metrópoles podem ser ecologicamente sustentáveis para a biodiversidade, estabelecendo e salvaguardando habitats naturais.
(Foto: Divulgação)



3 comments
Pela primeira vez, nenhum integrante da “boiada que passa”, o gado ruminante de indecência muge contra esse excelente trabalho para impedir a aniquilação da biodiversidade nas cidades. Todavia, esse gado continua a implacável devastação dos rios (apresentado nesse trabalho), florestas e toda a biodiversidade, pelo agronegócio e mineração com mercúrio, pesca até a extinção de toda a biodiversidade marinha, que estão fora das cidades!
A “boiada que passa” pouco se importa em cidades com biodiversidade, pois o interesse é devastar todo o planeta!
O gado indecente da “boiada que passa” quer a davastação da biodiversidade em todo o planeta!