Recursos humanos para uma transição energética justa e ambientalmente sustentável

Desenvolvimento de competências, inclusão e inovação

Resumo

A transição energética representa uma transformação estrutural que ultrapassa o setor energético tradicional, exigindo planejamento de longo prazo e integração entre dimensões sociais, econômicas e ambientais. No Brasil, os desafios envolvem segurança e pobreza energéticas, descarbonização industrial, regulação e formação de novos profissionais. Essa mudança demanda competências interdisciplinares e uso intensivo de tecnologias digitais e inteligência artificial, orientadas à construção de um sistema energético neutro em carbono, justo e sustentável, sustentado pelo conhecimento e pela inovação.

Introdução

Num contexto global no qual a urgência de combater as alterações climáticas e de promover o desenvolvimento sustentável domina as agendas política, social e econômica, a transição energética surge como uma das principais estratégias para garantir um futuro mais justo e ambientalmente equilibrado. A complexidade dessa mudança exige um olhar para além da discussão sobre recursos primários de energia e tecnologias de conversão. É uma transformação que exige um planejamento de longo prazo com um olhar atento às dimensões sociais, econômicas, políticas e ambientais, uma transformação muito mais abrangente, que transcende os limites do setor energético convencional.

Apesar da alta participação de renováveis no Brasil quando comparamos com o padrão internacional, e a busca de aumentar o papel delas, o país enfrenta desafios significativos para garantir a segurança energética, especialmente para um sistema energético renovável que estará cada vez mais dependente das condições climáticas. Além disso, a transição energética deve hoje combater a pobreza energética e integrar as novas tecnologias de baixo carbono de forma justa e equitativa. (Figura 1)


Figura 1. A transição energética deve combater a pobreza energética e integrar novas tecnologias de forma justa e equitativa.
(Foto: Divulgação)

 

No passado, as diversas transições energéticas foram basicamente baseadas em acréscimos de novos recursos energéticos, de novas e crescentes demandas por serviços de energia e novas tecnologias. Já não é mais assim. Se antes elas foram aditivas, a atual transição energética a que nos referimos é transformativa, ou seja, modificaremos profundamente a infraestrutura de oferta e o próprio padrão de serviços de energia disponíveis.[1]

Em um artigo anterior, publicado na Ciência & Cultura em 2024,[2] discutimos alguns dos principais desafios e oportunidades da transição energética no Brasil hoje e exige mais do que a adoção de fontes renováveis. São necessárias reformas regulatórias, modernização da infraestrutura, formação de capital humano e o redirecionamento de investimentos em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) para longe dos combustíveis fósseis (ao contrário do que é feito atualmente). Substanciais investimentos em nova infraestrutura serão necessários, que ultrapassam a capacidade de serem financiadas pelo setor público, e, portanto, inovações regulatórias deverão surgir para atrair novos recursos e criar modelos de negócios.

O relatório “Neutralidade de carbono até 2050: Cenários para uma transição eficiente no Brasil[3] vai nessa direção, indicando que a descarbonização no Brasil requer uma otimização sistêmica, considerando não somente a geração de energia, mas também a demanda por eletricidade e combustíveis líquidos. Além disso, haverá a necessidade de compensar emissões em setores de difícil abatimento (como transporte aéreo e marítimo), possivelmente com maior uso de bioenergia com captura e armazenamento de carbono (BECCS). Isso mostra que a transição energética afeta toda a cadeia produtiva e de consumo de bens e serviços.

 

“O país enfrenta desafios significativos para garantir a segurança energética, especialmente para um sistema energético renovável que estará cada vez mais dependente das condições climáticas.”

 

A indústria de base, por exemplo, que fornece insumos para a expansão da geração de energia renovável (cimento e aço, por exemplo), também precisa ter estratégias para promover sua descarbonização, como é discutido por Fernandes e colaboradores (2024) [4] em seu relatório para o BNDES. Isso demonstra a interconexão entre os setores e a necessidade de uma abordagem integrada.

 

Transição energética e recursos humanos

No contexto brasileiro, nosso desafio é a abordagem integrada de mudanças climáticas, uso da terra, energia, recursos hídricos e desenvolvimento econômico com limitada capacidade de investimento público. Isso é particularmente relevante devido à vasta diversidade ecológica, nossa dependência de recursos naturais, e em particular bioenergia e hidroeletricidade, e o propósito de desenvolvimento econômico sustentável. A complexidade da atual transição energética demanda uma nova geração de profissionais capacitados para entender os diversos desafios dessa transformação, considerando os atributos de segurança, investimentos, acesso e sustentabilidade em um contexto de mudanças climáticas. (Figura 2)


Figura 2. Desafio brasileiro é a abordagem integrada de mudanças climáticas, uso da terra, energia, recursos hídricos e desenvolvimento econômico com limitada capacidade de investimento público.
(Foto: Caio Coronel/ Itaipu Binacional. Reprodução)

 

A formação de recursos humanos, portanto, deve considerar as profundas transformações da atual transição energética. É necessário incorporar ao desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes que capacitem as pessoas a desempenhar funções específicas com excelência. No cenário da transição energética, antecipam-se demandas crescentes relacionadas não só à adaptação e modernização tecnológica, bem como à gestão e reestruturação de setores inteiros, com impactos sobre empregos, processos produtivos e modelos de negócio. Como mencionado por Krumdieck (2019),[5] a transição energética inclui conhecimentos das engenharias e ciências exatas, mas também será necessário compreender os contextos sociais, institucionais, econômicos e ambientais relacionados ao fornecimento de energia e ao seu uso final. Provavelmente, a parte mais desafiadora da transição energética é a capacidade de orientar as opções de desenvolvimento atuais, ao mesmo tempo em que se projetam soluções para o futuro de longo prazo.

A preocupação com a capacitação de recursos humanos para o setor de energia no Brasil existe há bastante tempo. Um bom exemplo disso é o Programa de Formação de Recursos Humanos (PRH) da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que existe há mais de 25 anos e financia alunos e cursos em várias universidades do país. Inicialmente, o PRH se dedicou exclusivamente ao tema relacionado a petróleo e gás. Com o tempo, começou a ampliar seu escopo para incluir energias renováveis e temas da transição, refletindo o reconhecimento da multidisciplinaridade. Entretanto, como muitas instituições globalmente, o PRH ainda responde principalmente às novas necessidades, acrescentando novas disciplinas, em vez de alcançar a integração e a interdisciplinaridade necessárias para uma transição eficaz, especialmente para aproveitar as oportunidades específicas do Brasil em bioenergia e bioeconomia.[6]

 

“Transição energética deve hoje combater a pobreza energética e integrar as novas tecnologias de baixo carbono de forma justa e equitativa.”

 

A transição energética hoje deve ser um movimento transformador, capaz de redefinir paradigmas de produção, consumo e convivência social. Para que seja justa e ambientalmente sustentável, é indispensável investir na capacitação dos recursos humanos, promovendo inclusão, inovação e responsabilidade. O futuro energético depende das pessoas: de seu conhecimento, sensibilidade e capacidade de construir soluções que respeitem o planeta e todos que nele habitam. Será necessária uma nova geração de profissionais com uma capacitação muito mais focada em processos sistêmicos do que em conteúdos específicos, como tem sido a ênfase até agora.

 

Mudanças tecnológicas e inteligência artificial

Esse novo sistema energético, resultante da transição, deverá ser muito mais flexível e dinâmico, capaz de gerenciar respostas rápidas tanto do lado da oferta quanto da demanda. Para isso, apoiará cada vez mais suas operações em sistemas de controle digitais e em inteligência artificial (IA). Contextos locais — como disponibilidade de recursos e condições climáticas — permitirão um planejamento e uma operação mais customizados dos sistemas energéticos. Geração e armazenamento locais poderão se integrar a setores de consumo (transportes, edificações e indústria), com intercâmbios simultâneos de eletricidade, calor e frio.

O processamento de grandes volumes de informação técnica e de dados para otimização econômica só será viável com maior aplicação de tecnologias digitais e baseadas em IA. Isso exige profissionais capazes de conceber e liderar essas novas operações, tanto no curto prazo — respondendo a demandas em tempo real por serviços essenciais de energia — quanto, principalmente, no longo prazo, para o adequado provisionamento de recursos (oferta e demanda) e para o desenvolvimento de infraestrutura de transporte e armazenamento de energia, sistemas de CCS/CCUS (ainda necessários em alguns setores) e de distribuição de serviços. Também será preciso considerar preços, regulação de mercado e a governança dos serviços públicos relacionados à produção, comercialização e uso de energia. O objetivo subjacente é a construção de um sistema energético de emissões neutras no longo prazo.

 

“A transição energética hoje deve ser um movimento transformador, capaz de redefinir paradigmas de produção, consumo e convivência social.”

 

O desafio central dessa nova capacitação é preparar profissionais com um conjunto amplo de competências para enfrentar os desafios de longo prazo impostos pela transição energética. Essas competências exigidas devem ser multidisciplinares e interdisciplinares, abrangendo as dimensões tecnológica, econômica, ambiental, política e institucional associadas às metas de transição. Profissionais capazes de interagir com a indústria, governos e consumidores. Suas atribuições‑chave necessárias incluem competências digitais (análise de dados, IA), competências sociais e políticas (liderança, negociação, raciocínio ético) e conhecimento técnico em áreas energéticas emergentes como hidrogênio e captura de carbono.

Portanto, a transição energética é uma necessidade motivada pela urgência das mudanças climáticas, com foco em garantir o abastecimento de energia e reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Essa transformação envolve mudanças estruturais, tecnológicas e institucionais destinadas a alcançar uma economia de baixo carbono por meio da expansão das energias renováveis, da geração distribuída, da eficiência energética, do armazenamento e da integração digital.

 

O presente artigo se baseia parcialmente em amplo trabalho de revisão bibliográfica sobre o tema que está sendo publicado na Annual Review of Energy and Environment , intitulado Engineering and Economics Education for Energy Transition: shaping up new human resources (Alves et al. In press).

 

Capa. A complexidade do processo atual de transição energética requer uma nova geração de profissionais aptos a compreender os vários obstáculos dessa mudança.
(Foto: Ricardo Botelho / MME. Reprodução)
[1] YERGIN, Daniel; ORSZAG, Peter; ARYA, Atul. The troubled energy transition. Foreign Affairs, 25 fev. 2025. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/united-states/troubled-energy-transition-yergin-orszag-arya. Acesso em: 28 out. 2025.
[2] JANNUZZI, Gilberto M. Transição energética no Brasil – Revista. Ciência e Cultura, n. 3a, 2024. Disponível em: https://revistacienciaecultura.org.br/?artigos=transicao-energetica-no-brasil. Acesso em: 28 out. 2025.
[3] CENTRO BRASILEIRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS (CEBRI); CENERGIA. Neutralidade de carbono até 2050: cenários para uma transição eficiente no Brasil. Programa de Transição Energética. Rio de Janeiro: CEBRI, 2023. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-726/PTE_RelatorioFinal_PT_Digital_.pdf. Acesso em: 28 out. 2025.
[4] FERNANDES, Patrícia Dias; DIAS, Pedro Paulo; BRAGA, João Paulo Carneiro de Holanda; SOUZA, Rodrigo Mendes Leal de. Descarbonização da indústria de base. Rio de Janeiro: BNDES, 2024.
[5] KRUMDIECK, Susan. Transition engineering: building a sustainable future. Boca Raton: CRC Press, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1201/9780429343919. Acesso em: 28 out. 2025.
[6] ALVES, Flavia; BOMTEMPO, José Vitor; COLOMER, Marcelo; JANNUZZI, Gilberto; PINTO JR, Helder Queiroz; OROSKI, Fabio. Engineering and economics education for energy transition: shaping up new human resources. Annual Review of Energy and the Environment, in press.
Gilberto de Martino Jannuzzi é professor de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Pesquisador Senior do Núcleo de Planejamento Energético NIPE (Unicamp). É membro da Coordenação do Programa de Mudanças Climáticas Globais da FAPESP.

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