Confira entrevista com a professora da Unifesp e editora do novo número da Ciência & Cultura
A expansão vivida pelas universidades públicas brasileiras há cerca de 20 anos foi fundamental para o avanço da ciência e para a democratização do ensino superior no Brasil. Mas ela precisa avançar, com a criação de mais universidades e mais vagas – porém com mais estrutura. É o que defende Soraya Smaili, professora do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenadora do Centro de Estudos Sociedade Universidade e Ciência (SoU_Ciência) e do projeto Ciência na Saúde junto ao Grupo Mulheres do Brasil. A pesquisadora enfatiza que é urgente dar mais oportunidades aos jovens brasileiros, mas afirma que antes é preciso um planejamento para poder fornecer um ensino de qualidade. Os jovens, aliás, é uma questão que a toca particularmente. Para Smaili, eles são nosso futuro, porém nos últimos anos ficaram totalmente vulneráveis. “Eles não têm acesso a quase nada, e o pouco acesso à informação que possuem é de baixa qualidade”, alerta. Em entrevista exclusiva para o Blog Ciência & Cultura, Smaili, que também é editora do novo número da revista Ciência & Cultura – A Universidade do Futuro no Brasil – também fala dos desafios enfrentados pelas universidades nos últimos anos e de seu papel fundamental como local de resistência para que a sociedade não caia no obscurantismo.
Confira a entrevista completa!
Ciência & Cultura – Qual o papel das universidades frente aos ataques ao sistema democrático?
Soraya Smaili – A universidade foi importante antes, no momento da ditadura de 64, e também nos momentos atuais que vivemos. Não vivemos uma ditadura militar, mas experimentamos um processo de extremismo, com muita relação com o pensamento de extrema-direita fascista e uma forte repressão do pensamento livre. E qual o papel da universidade nesse contexto? Primeiro, é resistir. A universidade, que tem autonomia de pensamento, é essencial para que a sociedade não caia no obscurantismo profundo. Então nesse período essa resistência firme e muito aguerrida foi fundamental para que nós não caíssemos nesse buraco de onde nunca mais conseguiríamos sair. O segundo é articular, fortalecer pensamentos que permitam o debate de ideias, que permitam um espaço aberto e livre para que as pessoas possam exercitar sua liberdade de expressão, sua vontade de produzir conhecimento. Esses dois pontos são centrais: a resistência e a produção de conhecimento para o bem-estar da sociedade.
“A universidade, que tem autonomia de pensamento, é essencial para que a sociedade não caia no obscurantismo profundo.”
C&C – Como esse ambiente de repressão do pensamento livre acabou afetando o ambiente acadêmico e até mesmo a pesquisa em geral?
SS – Nós vivemos um clima de terror. Além do fato de que muitos de nós dentro das universidades termos sido perseguidos, nós vivemos num ambiente de medo, ao ponto das pessoas terem muita dúvida em se manifestar, em trazer novas ideias, e até mesmo em fazer estudos sobre temas que pudessem gerar desconfiança por parte do governo anterior. Foi um período em que houve repressão de fato e um ambiente repressor, que produziu danos muito sérios para nós. Diferente da ditadura, quando você sabia quem era o opressor, nesse caso a situação é muito mais difusa e os ataques vieram de muitos campos e setores diferentes e nos cercaram de diversos lados: corte orçamentário, mídias sociais, etc. Então tudo isso junto criou essa situação de grande dificuldade não só para as universidades, mas para todas as instituições responsáveis pela produção do conhecimento. Muitos pesquisadores acabaram deixando o país. Mas muito resistiram, e para esses que resistiram, o efeito psicológico, físico e mental foi muito grande. Então hoje nós temos um grande número de pessoas em nossas universidades, entre estudantes, técnicos e professores, com problemas de saúde mental. E isso é um reflexo da sociedade. A sociedade também está assim.
“Se tivéssemos hoje aquele universidade de 15 anos atrás, talvez não tivéssemos tido a mesma resistência e a mesma capacidade de suportar a crise como nós tivemos agora.”
C&C – De que forma isso afetou a sociedade?
SS – Os efeitos nós já estamos sentido. Na sociedade, a falta de estrutura para o atendimento das pessoas mais necessitadas, os jovens de classes sociais mais vulneráveis sem emprego, comida, ou segurança – e isso se reflete na busca pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e pelos vestibulares. Tanto a busca pelo Enem quanto a entrada nas universidades caíram significativamente nos últimos anos. Também na pós-graduação tivemos um número bem menor de teses defendidas. Isso mostra o quanto os jovens foram afetados. Tudo isso é consequência das ações de repressão, do cerceamento da liberdade de expressão e de produção de conhecimento, do ambiente hostil para a comunicação, do negacionismo que ganhou grande campo e foi até mesmo estimulado. Nós ainda vamos ter que lidar com isso por muito tempo.
“Essas politicas não só ajudaram a resistência como fizeram bem para a própria universidade, que se tornou mais diversa, mais humana e mais rica”.
C&C – A expansão vivida pelas universidades públicas brasileiras, com aumento do número de vagas e criação de novos campi e cursos, contribuiu para a democratização do ensino superior no Brasil – e para que ela se tornasse esse espaço de resistência?
SS – A universidade avançou muito. É uma universidade bem diferente daquela de 15 anos atrás. A universidade pública brasileira deu esse grande passo – principalmente as federais. Mas precisamos voltar a crescer. Precisamos ter mais universidades públicas, mais vagas, mais estrutura. Porque o ensino privado cresceu muito. Isso não significa que nós queremos substituir uma pela outra, mas também não podemos permitir um crescimento sem estrutura, sem planejamento, sem qualidade. É preciso dar mais oportunidades para os jovens, mas não basta apenas criar mais vagas. É preciso criar todo um arcabouço político para proteger os nossos jovens, porque eles estão completamente vulneráveis. Eles não têm acesso a quase nada, e o pouco acesso à informação que possuem é de baixa qualidade. Nós ainda somos muito pouco eficientes na entrega de informação de boa qualidade e de formação de boa qualidade para nossos jovens. E dessa forma nossos jovens ficam à mercê dos “TikToks” da vida, dos grupos negacionistas, etc. Porque eles bombardeiam dia e noite a cabeça desses meninos que não tem preparo para resistir a isso, para se defender. Então precisamos ter políticas públicas, com o Estado atuando fortemente em todos os níveis, não só oferecendo mais universidades, mas também fornecendo mais empregos, menos fome, mais segurança. Recentemente nós do SOU_Ciência fizemos uma pesquisa com esses jovens e perguntamos qual era sua maior preocupação. E a maior preocupação dos nossos jovens é a pobreza, a segunda é o emprego, a terceira é a violência, a quarta são as drogas, e a quinta é a educação. Eu estou enfatizando aqui os jovens, porque eles são o nosso futuro. Então se não tivermos um arcabouço que proteja e que possibilite que nossos jovens pensem menos nessas quatro coisas, então eles vão se preocupar com o que realmente deveriam estar preocupados nessa idade, que é a educação. Aí os jovens vão procurar o Enem, vão querer entrar na universidade, vão ter uma perspectiva diferente. Porque hoje o problema é que uma grande parcela não está nem tentando. E precisamos entender porque eles nem estão tentando, apesar da existência de programas como o Enem, o Sisu (Sistema de Seleção Unificada), a Universidade Gratuita. Então essa é uma pergunta importante.
C&C – Apesar desse cenário “sombrio”, ainda temos experiências positivas, como as políticas de ações afirmativas que vêm tornando as universidades mais inclusivas. Como a introdução das políticas de cotas e as ações afirmativas modificaram as relações no interior das universidades e como elas se refletem na sociedade?
SS – O fato de nós termos tido nos anos anteriores ao último governo políticas de inclusão, ações afirmativas, políticas de cotas para negros e indígenas, cotas de escola pública, e mais recentemente muitas universidades adotando cotas na pós-graduação e concursos adotando cotas para técnicos e para docentes, isso é uma verdadeira conquista e um grande avanço. Então nossas universidades mudaram, o perfil socioeconômico dos nossos alunos mudou. Hoje você tem mais de 70% de estudantes vindo de classes sociais mais baixas. Se tivéssemos hoje aquela universidade de 15 anos atrás, talvez não tivéssemos tido a mesma resistência e a mesma capacidade de suportar a crise como nós tivemos agora. Porque nós sabemos que uma parte das classes sociais mais elevadas apoiavam o último governo. Então talvez tivéssemos uma resistência menor e uma destruição maior. Assim, eu acredito que essas politicas não só ajudaram a resistência como fizeram bem para a própria universidade, que se tornou mais diversa, mais humana e mais rica com saberes diferentes e histórias diversas, não apenas de um determinado grupo da sociedade. Isso torna a universidade mais rica e mais conectada com a sociedade, porque ela representa a sociedade, não é uma coisa a parte. É certamente uma vitória.