Edição da Ciência & Cultura celebra centenário de um dos mais célebres cientistas brasileiros
A participação decisiva em duas experiências diferentes entre os anos de 1946 e 1948, ambas relacionadas à existência da mesma partícula elementar (o méson pi, ou píon), transformaram, para sempre, a vida de um jovem físico brasileiro com apenas 23 anos. Ele nascera em 11 de julho de 1924 na cidade de Curitiba (PR) e se formara em física, com 19 anos na USP, tendo como mestres Gleb Wataghin e Giuseppe Occhialini. Em pouco tempo, e ainda no início da sua carreira, Cesar Lattes viu-se catapultado ao panteão da fama. Este acontecimento foi um divisor de águas e teria um papel essencial na organização e no desenvolvimento da pesquisa científica no Brasil.
Em 1946/47, foi feita a descoberta da existência do méson Pi (píon), com a confirmação experimental feita a partir da análise de emulsões nucleares expostas aos raios cósmicos por Occhialini (Pic du Midi, França) e por Lattes (Chacaltaya, Bolívia). Neste período Lattes trabalhava no grupo de Bristol (Reino Unido) para onde havia sido levado por Occhialini. O resultado principal foi divulgado pela revista Nature, em 1947, em artigo assinado por Cesar Lattes, Hugh Muirhead, Giuseppe Occhialini e Cecil Powell. Era a comprovação de uma hipótese feita, anos antes, pelo físico japonês Hideki Yukawa, de que a coesão do núcleo atômico era devida à troca de uma partícula, então desconhecida, entre prótons e nêutrons. Este feito coletivo levaria à atribuição do Prêmio Nobel de Física, em 1950, a Cecil Powell, chefe do grupo de pesquisa de Bristol.
Outro trabalho notável de Lattes, no ano seguinte, foi a confirmação da existência do píon no cíclotron, construído por Ernest Lawrence e colaboradores na Califórnia (EUA), para a qual Lattes contribuiu decisivamente, com Eugene Gardner. Tais descobertas contribuíram para o desenvolvimento da física de partículas elementares e de altas energias. A divulgação dos resultados obtidos por Lattes e seus companheiros, pela sua importância para a ciência, correu o mundo e eles foram amplamente difundidos pela mídia no Brasil. Em um momento em que a física nuclear adquirira enorme destaque, logo depois da construção e do uso catastrófico das primeiras bombas atômicas, Lattes exemplificava o talento brasileiro no domínio da ciência e do nuclear. O impacto foi tal que ele chegou a ser chamado de “nosso herói nuclear”.
“A divulgação dos resultados obtidos por Lattes e seus companheiros, pela sua importância para a ciência, correu o mundo e eles foram amplamente difundidos pela mídia no Brasil.”
Apesar de convites de várias universidades do exterior, com laboratórios e condições de trabalho adequadas, Lattes optou por retornar ao Brasil. Estava convencido de que a ciência era algo que os governos nacionais deveriam, obrigatoriamente, se preocupar e apoiar. Tinha como parceiro e companheiros de batalha cientistas como José Leite Lopes, Jayme Tiomno, Elisa Frota-Pessôa, Mário Schenberg, Gleb Wataghin, Marcelo Damy, Bernhard Gross, Costa Ribeiro, Álvaro Alberto, Francisco Xavier Roser e outros mais. No contexto desenvolvimentista da época, que englobava vários setores da sociedade brasileira, Lattes e seus companheiros arregaçaram as mangas e foram atrás de apoio para a institucionalização da ciência, para que ela deixasse de ser algo frágil, fugaz e débil no Brasil. A primeira grande conquista, já em 1949, foi a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), fruto de uma aliança entre cientistas e setores militares e empresariais progressistas.
Outros avanços importantes se seguiram. Ainda que Lattes e seus companheiros nem sempre tenham sido bem-sucedidos em seus sonhos e projetos para o país, é inegável que mudaram a ciência brasileira. A organização da ciência brasileira e as primeiras iniciativas de uma política científica nacional, com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e posteriormente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – e de outras FAPs – e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), são resultados dos esforços de um conjunto de pessoas, de setores sociais e das entidades científicas que já haviam sido criadas, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Lattes se dedicaria também, nos anos seguintes, ao lado de vários colegas, a estimular a cooperação internacional em sua área de pesquisa, o que levou à construção de laboratório no monte Chacaltaya e a uma longa e relevante cooperação com cientistas japoneses. Sempre valorizando a física experimental, ele se dedicaria também, nas décadas seguintes, a formar grupos de pesquisa no país, como na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Para se compreender a importância do trabalho de Cesar Lattes, é preciosa a avaliação de seu amigo e parceiro de muitos anos e de lutas pela ciência brasileira, José Leite Lopes: “O trabalho dele mostrou que era possível um jovem brasileiro fazer uma descoberta importante na física universal. Isso teve um grande impacto na América Latina. Países como Argentina, Peru e Bolívia ficaram entusiasmados e, também, avançaram em suas pesquisas. Ele também mostrou que era possível a um país do Terceiro Mundo e da América Latina fazer pesquisa de qualidade mesmo em condições não tão favoráveis quanto as dos países do Primeiro Mundo.”
“Apesar de convites de várias universidades do exterior, com laboratórios e condições de trabalho adequadas, Lattes optou por retornar ao Brasil.”
Segundo Leite Lopes, o estudo da física no Brasil se alterou muito depois de Cesar Lattes: “Mudou muita coisa. Foram criados vários institutos de pesquisa e a ciência ganhou um impulso importante. Os físicos brasileiros ficaram entusiasmados com o trabalho do Lattes no exterior. Ele foi um divisor de águas. Depois da criação do CBPF, outros institutos foram criados para fazer pesquisa em física. Em Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Sul, Belo Horizonte. Também houve um impacto importante no próprio governo. O almirante Álvaro Alberto “(…) disse que era importante criar um conselho nacional de pesquisa. (…) [a proposta] foi aprovada, dando origem, em 1951, ao CNPq. O Lattes fez parte da comissão que escreveu o projeto.”
É interessante registrar a conexão profunda entre a ascensão científica de Lattes e o surgimento da SBPC. Há uma correlação entre a criação da sociedade e a movimentação pública criada pelas descobertas de Lattes e colegas, que foram amplamente divulgadas na mídia brasileira a partir de fevereiro de 1948. Não é coincidência, portanto, que a SBPC tenha sido criada em julho de 1948, no período em que a fama e o prestígio de Lattes explodira nas mídias e galvanizara o país, o que favoreceu e estimulou os cientistas a se organizarem para lutar pela ciência.
Não por acaso o primeiro editorial desta revista da SBPC, Ciência & Cultura [v. I, n. 1-2, p. 44, 1949], teve por título “Organização da Ciência no Brasil” e estava todo escorado em uma entrevista de Lattes, dada em sua visita ao Rio de Janeiro, com “declarações de grande atualidade”. Alguns trechos da entrevista de Lattes foram destacados no editorial da revista:
“O essencial no Brasil é organizar laboratórios onde os nossos cientistas possam trabalhar. Assim, formaremos um ambiente propício às pesquisas científicas no país e poderemos convocar técnicos estrangeiros que nos ministrem ensinamentos. (…) Nos Estados Unidos, na Inglaterra, em todos os países adiantados, tanto o governo como as entidades privadas interessam-se profundamente pelo desenvolvimento das pesquisas. Dos laboratórios, em grande parte, chegam as soluções para os grandes problemas da atualidade, o bem-estar presente e futuro. (…) Os nossos cientistas encontram grandes dificuldades para se entregarem às pesquisas, não só pela falta de laboratórios, como por não perceberem o suficiente para viver. (…) Vejam o que aconteceu nos EUA: os grandes cientistas europeus foram atraídos ao país e hoje ensinam nas universidades. (…) Precisamos fazer o mesmo. O governo, por sua vez, deveria fornecer bolsas de estudos aos melhores estudantes brasileiros a fim de que, sob nosso patrocínio, pudessem estudar nas universidades norte-americanas. (…) O Centro Nacional de Pesquisas Científicas, ora em organização, será de grande importância para o desenvolvimento científico do Brasil.”
Em dezembro de 1948 a SBPC iniciou uma série de palestras sobre física nuclear. Na segunda conferência da série falou Cesar Lattes sobre “Mésons e sua produção artificial”. Ele discorreu sobre seus importantes trabalhos, em colaboração com Gardner, que resultaram na produção artificial dos píons. Cesar Lattes foi apresentado por Wataghin a um público que lotava completamente o salão da Faculdade de Direito de São Paulo.
Este número especial da Ciência & Cultura, destinado a comemorar o centenário de Lattes, constitui uma homenagem da SBPC a ele e a seu legado. Mas é mais do que isto. Pretende também colaborar para o resgate de um período importante da história da ciência brasileira. Nele, estão contidos artigos, podcasts e vídeos de historiadores da ciência, conhecedores da obra de Lattes e especialistas naquele período da ciência brasileira, depoimentos pessoais de colaboradores de Lattes, textos jornalísticos e outros materiais e referências sobre Lattes, sua vida e sua obra.
“Ainda que Lattes e seus companheiros nem sempre tenham sido bem-sucedidos em seus sonhos e projetos para o país, é inegável que mudaram a ciência brasileira.”
Lattes foi um dos cientistas mais conhecidos e venerados pelos brasileiros. Pesquisas recentes mostram que ainda é conhecido por uma parcela de seus conterrâneos, mas ela se reduz com o tempo. É necessário que se faça um resgate permanente de Lattes e de muitos outros cientistas brasileiros, como é o caso de Johanna Döbereiner, bem como de nossas instituições de pesquisa. Em 2018, um selo conjunto de Cesar Lattes e Johanna Döbereiner foi emitido pelos Correios. Seria importante que a história da ciência no Brasil fosse também abordada, em alguma medida, na escola básica e nas universidades. Um país com formação científica deficiente, e com desconhecimento grande da ciência que foi e que é aqui praticada, pode favorecer atitudes negacionistas e anti-ciência.
Entre as frases preferidas de Lattes, que dizia ter sido “arrastado pela história”, encontra-se a seguinte, que ele atribuía a Rabelais: “Ciência sem consciência é a ruína da alma”. No final de uma entrevista à revista Ciência Hoje, criada pela SBPC, deixou como recado para todos nós a frase de Salomão no Livro da Sabedoria: “A sabedoria não entra de jeito nenhum na alma malvada”. E completou: “Acho que está aí a distinção entre sabedoria e ciência. A sabedoria realmente não entra na alma malvada… mas a ciência sim.”