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Cesar Lattes: para além das fronteiras científicas

Físico foi um pioneiro do avanço científico no Brasil

 

O físico brasileiro Cesar Mansueto Giulio Lattes, mais conhecido como Cesar Lattes, deixou uma marca permanente na comunidade científica, na formação de pesquisadores e na valorização da física. No ano de seu centenário, seu trabalho merece ser relembrado – e celebrado. “O trabalho de Lattes ajudou a despertar a curiosidade das pessoas pela ciência. Mesmo que elas não compreendessem totalmente o que ele fez e produziu, elas, ao menos, sabiam que ‘algo’ chamado ciência existia. E isso não é pouco”, menciona Antonio Augusto Passos Videira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 

Pioneirismo

A trajetória de Cesar Lattes iniciou-se em 1946, quando foi para a Inglaterra a convite de seu professor Giuseppe Occhialini para estudar raios cósmicos. Com o intuito de entender melhor o núcleo de um átomo, em particular a interação entre prótons e nêutrons, componentes do núcleo atômico – que, segundo o físico japonês Hideki Yukawa deveria ser mediada por uma partícula ainda desconhecida, o méson – Lattes pediu ao fabricante de placas fotográficas que incluísse o elemento químico boro em sua composição. Isso faria com que a exposição dos registros nas chapas, atingidas pelos raios cósmicos, durasse mais tempo e, consequentemente, as trajetórias das partículas pudessem ser observadas com mais facilidade.

Occhialini levou as placas modificadas para o Pic du Midi, nos Alpes franceses, durante suas férias, e deixou-as expostas ao chuveiro de partículas resultantes dos raios cósmicos (evento que acontece diariamente na atmosfera do planeta). Ao retornar, Occhialini e Lattes perceberam que a ideia da utilização do boro deu certo, resultando em uma melhor visibilidade da trajetória das partículas. Lattes propôs repetir a experiência em maiores altitudes, visto que as chances de detecção dessas partículas são maiores nessas condições. Concordaram, então, em repetir o experimento em Chacaltaya, na Bolívia, que possui 5.421 metros de altitude. (Figura 1)


Figura 1: Cesar Lattes em Chacaltaya
(Fonte: Arquivo CBPF, foto enviada por Fernando Caruso)

 

Com imagens mais detalhadas captadas durante um mês, Cesar Lattes confirmou experimentalmente a existência do méson pi – a partícula responsável pela coesão de prótons e nêutrons no átomo. “A observação desta partícula denominada píon resolveu uma grande questão do porquê os prótons (cargas positivas) ficavam confinadas no núcleo do átomo, sem repulsão entre elas”, destaca Edison Shibuya, professor aposentado do instituto de física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A descoberta desta partícula subatômica é muito importante para entender as forças nucleares, além de ter ocasionado em um impacto gigante na comunidade científica global, especialmente na física de partículas que originou posteriormente muitas outras tecnologias, como a medicina nuclear utilizada no tratamento do câncer e a internet, por exemplo”, menciona Gabriela Bailas, PhD em física e criadora do canal Física e Afins. ‍

No livro “Cesar Lattes, arrastado pela história”, o autor Cássio Leite Vieira reforça a importância do méson pi: “A terapia que usa feixes de píons para destruir células cancerosas passou a ser empregada principalmente a partir da década de 1980. E a ideia básica por trás do método é que o píon pode penetrar o tecido saudável sem causar muitos danos, mas, ao chegar ao tumor, a partícula ‘explode’ (desintegra-se), matando as células doentes”. (Figura 2)


Figura 2: Capa da revista Science News Letter com Lattes e Gardner no sincrociclotron de 184”.
(Fonte: Cartas de Notícias Científicas/ foto enviada por Cássio Leite Vieira)

 

Atuação

A descoberta rendeu um artigo na revista Nature e o prêmio Nobel de Física para o físico britânico Cecil Powell, então diretor do laboratório de Londres. O prêmio era concedido apenas para o chefe do grupo da pesquisa, porém sua não atribuição a Lattes é considerada por muitos estudiosos uma injustiça. “O prêmio Nobel envolve mais política que ciência. Dito isso, também sabemos que nunca um físico latino-americano levou o Nobel apesar de descobertas incríveis”, declara Gabriela Bailas. Nos anos seguintes, Cesar Lattes recebeu sete indicações para o Nobel, mas nunca foi agraciado com o prêmio. “Lattes se destacava por sua determinação, curiosidade e abordagem colaborativa, diferenciando-se de outros cientistas da sua época. Sua disposição para o trabalho em equipe combinada com uma notável tenacidade foi evidenciada na sua contribuição crucial para a descoberta do méson pi”, destaca.

 

“Lattes se destacava por sua determinação, curiosidade e abordagem colaborativa, diferenciando-se de outros cientistas da sua época.”

 

Em 1948, Lattes chega aos Estados Unidos com o intuito de produzir o méson pi artificialmente utilizando o acelerador de partículas na universidade de Berkeley, considerado o maior do mundo. Dez dias depois, Lattes, juntamente com o físico norte-americano Eugene Gardner, confirmaram as trajetórias da partícula no acelerador, estabelecendo assim um caminho de novas possibilidades para a física nuclear e um verdadeiro alvoroço na comunidade científica. “Além de comprovar a existência do méson pi, Lattes ajudou a mostrar que os usuários dos aceleradores de partículas não precisavam conhecer o funcionamento das máquinas para usá-las adequadamente”, analisa Antonio Videira.

 

Valorização da física 

As conquistas de Lattes lhe trouxeram influências e acordos políticos, refletindo em uma extensa lista de contribuições para a física brasileira e consequentemente, em sua autonomia na valorização da ciência. Entre seus maiores feitos está a cofundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) em 1949. Segundo o ranking SCImago de 2015, o CBPF é, entre todas as instituições científicas brasileiras, a que mais publica trabalhos de excelência.

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entidade cujo foco no fomento de bolsas de estudos para pesquisadores, também foi uma iniciativa de Lattes, sendo sua criação um marco na história do desenvolvimento no país. Atualmente, o CNPq conta com cerca de 15 mil bolsistas, conforme o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Cinquenta anos depois, o banco de dados de currículos acadêmicos do CNPq, a conhecida Plataforma Lattes, foi batizada em seu nome, sendo uma dentre tantas homenagens concedidas ao físico brasileiro.

Lattes também trouxe consigo em 1962 a Colaboração Brasil-Japão (CBJ): um projeto de cooperação científica originário da fraternidade existente entre Lattes e o Professor Yukawa (o primeiro a destacar a existência do méson pi em 1934, sendo uma inspiração a Lattes). “O projeto entre os dois países impulsionou e consolidou a pesquisa em raios cósmicos, uma das áreas na qual cientistas brasileiros fizeram muitas contribuições relevantes”, destaca Antonio Videira. Não o bastante, Lattes foi membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e recebeu nomeações em diversas entidades nacionais e internacionais, como o título de cidadão honorário pelo governo boliviano por sua atuação no continente sul-americano.

 

“Sua dedicação à pesquisa e sua influência na formação de novos cientistas estabeleceram um padrão elevado, incentivando a busca por conhecimento e a excelência acadêmica.”

 

Em 1967, o físico foi contratado pela recém-criada Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sob a incumbência de criar as atividades de pesquisa do instituto de física Gleb Wataghin, que até então só possuía a parte didática. Edison Shibuya, professor aposentado do Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia, do Instituto de Física Gleb Wataghin, na Unicamp, acompanhou de perto o nascimento do instituto e relembra que seu primeiro laboratório de emulsões nucleares foi em um banheiro adaptado de um porão, o qual dividia com Lattes. “Apesar das condições modestas, a vida na época era bastante feliz porque tínhamos tudo que precisávamos”, recorda Edison Shibuya. (Figura 3)


Figura 3. Fotos da sede inicial da Unicamp feita por Edison Shibuya em Fevereiro de 1968, quando ajudou a preparar em Campinas o primeiro experimento da Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos.
(Fonte: Arquivo)

 

Legado

Apesar de todo renome internacional como físico, Lattes se considerava sobretudo um professor, preocupando-se com a formação altamente qualificada de seus alunos. “Sua dedicação à pesquisa e sua influência na formação de novos cientistas estabeleceram um padrão elevado, incentivando a busca por conhecimento e a excelência acadêmica. Também sabemos que ele era uma pessoa que trabalhava muito e exigia bastante de seus alunos”, declara Gabriela Bailas.

Cesar Lattes faleceu em 2005 aos 81 anos, mas, para além de sua vida, seu trabalho inovador e genialidade permaneceriam no imaginário popular e na mídia, sendo crucial na promoção do desenvolvimento da física experimental e da comunidade científica brasileira. Por meio de sua influência, Lattes permitiu que seus feitos fossem usados politicamente, cujo objetivo era fixar no Brasil a pesquisa e a educação. “Dentre suas características, Lattes era perspicaz, intuitivo, humilde, espirituoso, com sentimento de gratidão e acima de tudo um patriotismo. Podia ter feito carreira lá fora, teve várias propostas, mas preferiu voltar e contribuir para o fortalecimento da física no Brasil”, menciona Edison Shibuya.

 

Capa. Legado de Cesar Lattes vai além de suas contrições para a física de partículas
(Fonte: Unicamp/ Arquivo. Reprodução)
Priscylla Almeida

Priscylla Almeida

Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
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