“Continuaremos envidando nossos esforços para consolidar em nosso País a democracia – lembrando que, sem a extinção da miséria e uma redução substancial da pobreza, ela continuará sendo apenas uma palavra”, escrevem Renato Janine Ribeiro e Claudia Linhares Sales, presidente e diretora da SBPC, em editorial da sessão especial do Jornal da Ciência desta semana, dedicada aos 60 anos do golpe militar que instituiu a ditadura no Brasil
Estes dias, completa 60 anos o golpe militar que pôs fim, por mais de duas décadas, à democracia no Brasil. Alguma coisa nos faz dar mais importância às datas redondas, múltiplas de dez, do que aos números por assim dizer picados. Talvez porque provoque balanços mais aprofundados. Pois bem, a ditadura atrasou nosso País. Pavoneou-se com o nome de “revolução” quando, na verdade, eliminou a possibilidade de uma revolução democrática ou burguesa, como queiram chamá-la, que mesmo sem sangue teria modernizado o Brasil e acolhido as massas na comunhão nacional.
O custo foi altíssimo. É verdade que a tortura e o assassinato geraram números inferiores aos da Argentina e Chile, mas para quem morreu números são de pouca significação. Pior, se assim podemos dizer, foi que exterminou o futuro. O Brasil dos anos 60 era pujante, cheio de vida, de projetos. A bossa nova talvez seja, para a classe média, seu mais poderoso significante. Mas trazia no seu bojo a ampliação e aprimoramento da educação, que até hoje não conseguimos realizar em escala decente, em especial no nível básico; uma saúde pública decente, que teria de esperar a Constituição de 1988; um salário mínimo decente, que somente daria um salto no século XXI; e muita coisa mais, que foi cortada na raiz. Isso, sem esquecer que, ao terminar a ditadura, o Brasil estava fortemente endividado e com uma forte inflação.
Um país sem memória não tem futuro: essa frase foi cogitada pelo Ministério dos Direitos Humanos para as recordações do golpe, mas decidiu o presidente Lula que o Estado brasileiro não lembraria o atentado à democracia, nem para exaltá-lo, como sucedeu nos recentes anos em que um governo fez de tudo contra o regime democrático, nem para condená-lo. Respeitamos a decisão presidencial, mas cabe à sociedade civil, de que fazemos parte, lidar com a memória. Com efeito, não podemos terceirizar para o Estado, ainda que democrático, aquilo que podemos – e sobretudo devemos – fazer nós mesmos.
A comunidade científica brasileira deve ter papel de proa nesse ajuste de contas com o passado. Muitos, inclusive eu, já comentamos que nosso País tem um problema grave com sua História. As grandes mudanças, que em outras nações passaram por revoluções, aqui se deram pela transição de cima para cima, em acordo das elites. Assim foi que devemos nossa independência ao príncipe herdeiro de Portugal, a República ao condestável do Império, a revolução de 1930 a três governadores membros do sistema vigente, a democratização de 1945 e a de 1985 a fiéis servidores da ditadura que as precedeu…
Não havendo um ajuste de contas, repetimos o que se diz no célebre romance de Giuseppe Tommasi di Lampedusa, O leopardo: “Tudo precisa mudar, para que tudo continue como antes”. Ou, como disse Antonio Carlos, governador de Minas Gerais, ao deflagrar a Revolução de 1930: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Na verdade, para que o povo não a faça.
A tentativa mais empenhada de mudar esse paradigma foi a Comissão Nacional de Verdade, criada pela presidenta Dilma Rousseff, e que muitos analistas entendem que terá sido a gota d’água a disparar contra ela o ódio de muitos militares, culminando no ultimato do comandante do Exército ao Supremo Tribunal Federal, para que não soltasse o preso político que era o então ex-presidente Lula.
Mas, se “acabou nosso carnaval”, como elabora o poeta, “mais que nunca é preciso cantar! É preciso cantar e alegrar a cidade”. Neste caso, é necessário recuperar essas páginas horríveis de nossa História. Os fatos comemorados estes dias já têm 60 anos de idade; em 1964, a expectativa de vida do brasileiro ao nascer, que hoje ronda os 75 anos, era inferior a sessenta. Ou seja, estatisticamente, o golpe estaria morto ou, pior, mortos estariam os que o presenciaram, os que o desferiram, os muitos que o sofreram. Mas, por isso mesmo, urge entender as responsabilidades, descrever a destruição, aprender a lição.
Nós, da ciência, temos duas ou três coisas a dizer. Primeira, são inúmeros os casos de cientistas que foram cassados, banidos, impedidos de pesquisar, sendo muitos dos nossos exilados. Segunda, temos muito a analisar e explicar, especialmente (mas não só) os que somos das Humanas e das Humanidades. Terceira, cabe-nos contar: erguer a voz da memória num sonoro Nunca mais! Não apenas nunca mais à censura, mas nunca mais à injustiça social, nunca mais à destruição da democracia, nunca mais ao desrespeito à dignidade daqueles que ainda são pobres, num país potencialmente rico.
Foi neste espírito que, faz um ano, a SBPC lançou a ideia de um Dia Nacional de Luta pela Democracia – não uma data fixada em lei pelo Estado, mas um dia criado e organizado pelos cidadãos, com destaque para as sociedades científicas, a fim de educar, em especial as jovens gerações, para o asco à ditadura e o respeito aos direitos. Depois de maduro debate, celebramos esta data no dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro. Este ano repetiremos.
Porque o perigo ressurgiu. Parecia, depois de trinta anos de democracia, com alternância no poder, com governos eleitos à direita e à esquerda, que o autoritarismo estava morto e enterrado. Mas a leviandade de um candidato derrotado, em 2014, precipitou o que foi nefasto: uma lavagem cerebral que conduziu dezenas de milhões a acreditarem, contra todas as evidências, em mentiras, que custaram a vida a pelo menos 500 mil brasileiros, ou seja, o excedente de mortos pela covid-19 em relação à média mundial, bem como a destruição de políticas públicas nas mais diversas áreas, que está sendo trabalhoso reconstruir. E a acreditarem também em inverdades absolutas, culminando na Terra plana, mas tanta coisa mais.
Por isso, hoje, faremos uma mesa de debates online, às 14 horas (www.yotube.com/canalsbpc), e continuaremos envidando nossos esforços para consolidar em nosso País a democracia – lembrando que, sem a extinção da miséria e uma redução substancial da pobreza, ela continuará sendo apenas uma palavra. Infelizmente, no Brasil, o que chamamos de ditadura é, grosseiramente falando, apenas a extensão às classes mais privilegiadas da vida sem lei que é infligida à maioria, composta dos mais pobres, durante os periodos democráticos. Isso tem que mudar!
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Claudia Linhares Sales, diretora da SBPC