Sociedade civil e científica reagem contra lei que equipara aborto a homicídio
Em uma movimentação rápida e controversa, deputados conservadores aprovaram um regime de emergência para a votação de um projeto de lei que estabelece um limite de 22 semanas de gestação para uma mulher poder interromper a gravidez. Se a interrupção ocorrer após esse período, a mulher poderá enfrentar uma pena de 6 a 20 anos de prisão, equivalente à pena para o crime de homicídio simples.
Com a aprovação do regime de urgência, o projeto será votado diretamente no plenário da Câmara dos Deputados, sem passar por comissões. Caso aprovado, o projeto seguirá para sanção ou veto presidencial. A legislação atual, estabelecida em 1940, não impõe limites gestacionais nas três circunstâncias permitidas: gravidez resultante de estupro, risco à vida da mulher e gestação de fetos anencéfalos. Especialistas afirmam que a nova proposta afetará gravemente o direito ao aborto para vítimas de violação, já que a dificuldade de acesso aos serviços pode resultar na realização do procedimento em estágios avançados da gravidez.
Protestos
O projeto gerou protestos em todo o país, especialmente por afetar um segmento vulnerável da população. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 mostram que 80% das vítimas de violência sexual no Brasil são meninas menores de idade. Apenas no último ano, foram registrados 74.930 casos de estupro de meninas entre 10 e 13 anos, o maior número já registrado.
A antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética, criticou duramente a proposta. “Essas meninas chegam atrasadas aos serviços porque são estupradas em casa, dificultando a identificação desses casos”.
Estudos mostram que muitas dessas meninas acabam tendo filhos de seus agressores, geralmente homens próximos, como pais, padrastos e tios. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2011 e 2016, 19,5% das notificações de estupro resultaram no nascimento de um ou mais filhos vivos.
Fátima Marinho, coordenadora de um estudo sobre o tema e ex-diretora do Departamento de Prevenção de Doenças Crônicas e Análise Epidemiológica do Ministério da Saúde, lamentou a falha no atendimento pós-estupro. “O Estado não atende plenamente as meninas. Elas estão tendo filhos através do Sistema Único de Saúde (SUS), mas isso significa que medidas adequadas não estão sendo tomadas após a denúncia de estupro”.
A advogada de direitos humanos Beatriz Galli, da IPAS Global Network, também criticou o projeto. “É um país com meninas que são estupradas e forçadas a ser mães. Este projeto não se propõe a melhorar o atendimento, preocupa-se apenas em punir a vítima”.
Diversas instituições, incluindo o Conselho Nacional de Saúde e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), manifestaram-se contra o projeto. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, ressaltou nas redes sociais a importância de garantir atendimento adequado no Sistema Único de Saúde para meninas e mulheres vítimas de estupro e em risco de vida.
Saúde pública
Abortos após as 20 semanas de gestação são raros, mas necessários em casos de malformações incompatíveis com a vida, doenças graves na gestante ou estupro. O ginecologista Olímpio Moraes, da Universidade de Pernambuco, destacou a dificuldade das meninas em identificar a gravidez a tempo, devido ao medo e às ameaças.
Susana Chávez, diretora do PROMSEX e secretária executiva do Consórcio Latino-Americano Contra o Aborto Inseguro (CLACAI), observou que o projeto de lei brasileiro vai na contramão dos avanços em outros países da região, como Argentina, Colômbia, Chile, México e Equador. “Muitos países da região incorporaram o aborto devido à violação na sua abordagem de saúde. Ao criminalizar a medida, este projeto atrasa o Brasil”.
Caso o projeto seja aprovado, as vítimas de estupro poderão enfrentar penas maiores que seus agressores: até 20 anos de prisão, enquanto a pena máxima para o crime de estupro é de 10 anos. “Quem mata um ser humano comete homicídio, daí a equiparação da pena”, justificou o deputado Sóstenes Cavalcante (PL), um dos autores do projeto.
A deputada Maria do Rosário (PT), que votou contra a urgência do projeto, afirmou que a Câmara não tem competência para decidir sobre procedimentos médicos e criticou a utilização das vítimas de estupro nesse conflito com o Supremo Tribunal Federal (STF). “Usaremos todos os instrumentos regulatórios para que o assunto não chegue ao plenário e seja arquivado”.
Com informações de: SciDev.Net