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Saint-Hilaire: o botânico francês que revelou o Brasil para o mundo

Entre 1816 e 1822, Auguste de Saint-Hilaire percorreu o interior do Brasil, descrevendo pela primeira vez milhares de espécies e deixando um legado que ainda inspira a ciência dois séculos depois.

 

Quando Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire desembarcou no Rio de Janeiro, em 01 de junho de 1816, mal podia imaginar que sua expedição ao Brasil se transformaria em uma das jornadas científicas mais influentes do século XIX. Aos 37 anos, o botânico e naturalista francês trocava a diplomacia e o conforto das cortes europeias pelo desconhecido de um país tropical em transformação, palco da transferência da corte portuguesa e território cobiçado pelo mundo das ciências naturais.

Durante os seis anos que permaneceu em território brasileiro, Saint-Hilaire percorreu a cavalo, burro ou a pé, uma vastidão de terras que abrangem os atuais estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Passou 15 meses em Goiás e visitou Minas Gerais em três ocasiões. Penetrou nas matas virgens com facão em punho — ou melhor, nas mãos de seus auxiliares, muitos dos quais eram escravizados — desbravando caminhos que revelariam ao mundo uma biodiversidade sem precedentes.


(Mapa original dos itinerários de Saint-Hilaire. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do RGS. Reprodução)

 

O resultado de suas andanças é impressionante: mais de 30 mil amostras reunidas, entre elas 24 mil espécimes de plantas e 6 mil de animais, incluindo 2 mil aves, 16 mil insetos e 135 mamíferos. A maioria das espécies jamais havia sido descrita antes. Suas anotações minuciosas e descrições detalhadas se tornaram referência para a ciência botânica e zoológica, mas também um retrato sensível e poético de um Brasil em formação. Seu olhar não era apenas o de um cientista, mas o de um observador fascinado pela complexidade e beleza da natureza.

“Para conhecer toda a beleza das florestas tropicais é necessário penetrar nesses retiros tão antigos como o mundo”, escreveu em Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1830), uma de suas obras mais conhecidas. Ao contrário de outros viajantes europeus, Saint-Hilaire descreveu o Brasil com sensibilidade e respeito — ainda que influenciado por ideias eurocêntricas, comuns à sua época.

 

“O resultado de suas andanças é impressionante: mais de 30 mil amostras reunidas, entre elas 24 mil espécimes de plantas e 6 mil de animais, incluindo 2 mil aves, 16 mil insetos e 135 mamíferos.”

 

Filho de uma abastada família de Orleães, na França, Saint-Hilaire havia sido preparado para gerir uma refinaria de açúcar, mas preferiu a literatura romântica e os relatos de viagens. Era fluente em alemão, inglês e português — este último o bastante para estudar a etimologia e as variações regionais da língua. Antes de chegar ao Brasil, frequentou cursos no Museu de História Natural e na Faculdade de Medicina de Paris, tornando-se um profundo conhecedor das ciências naturais. Era, nas palavras da Brasiliana da Biblioteca Nacional, “um homem que dominava tanto a literatura científica como os saberes técnicos da coleta e conservação de plantas”.

 

Viagem ao Brasil

A vinda ao Brasil foi possível graças à sua integração à comitiva diplomática do Duque de Luxemburgo, enviada à corte portuguesa. Coincidiu com a chegada da Missão Artística Francesa, que trouxe nomes como Debret e os irmãos Taunay. Mas Saint-Hilaire tinha uma missão distinta: explorar, catalogar e entender a natureza exuberante de um país ainda pouco conhecido pelos europeus.

Seu trabalho era financiado pelo governo francês, que via nas expedições científicas um instrumento de prestígio nacional e avanço do conhecimento universal. A ciência, como se pensava na época, deveria transcender fronteiras: ao estudar o Brasil, Saint-Hilaire acreditava estar contribuindo para o bem-estar da humanidade. E assim o fez. Em contato com o cônsul francês Maller e com o frei Leandro do Sacramento, enviou caixas e mais caixas com plantas vivas para colônias francesas como Martinica e Caiena.


(Auguste de Saint-Hilaire. Reprodução)

 

A filantropia científica, como era chamada, escondia, no entanto, um olhar hierárquico entre o “civilizado” e o “empírico”. Mesmo assim, Saint-Hilaire demonstrou interesse real pelas práticas tradicionais de uso de plantas medicinais e pela alimentação dos povos locais. Seus relatos, escritos em uma prosa elegante e cheia de referências filosóficas e literárias, dialogam com nomes como Humboldt, Buffon, Madame de Staël e Chateaubriand.

De volta à França, em 1822, dedicou-se a organizar e publicar suas observações. Entre 1830 e 1851, publicou os oito volumes de Voyages dans l’intérieur du Brésil, obra monumental que viria a ser complementada postumamente por um herdeiro. A primeira tradução parcial saiu no Recreador Mineiro, em 1845. Somente no século XX as traduções integrais começaram a ser publicadas no Brasil.

Mais de dois séculos depois, Saint-Hilaire segue inspirando cientistas e estudiosos. Em 2016, sua chegada ao Brasil foi celebrada em seminários, exposições e simpósios, como o promovido pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o 24º Simpósio de Plantas Medicinais do Brasil. Seus cadernos de campo, repletos de detalhes sobre flora, fauna e paisagens, ainda são fonte de consulta para pesquisadores interessados não apenas na ciência, mas também na história do Brasil.

 

“Ajudou a revelar ao mundo um Brasil de riquezas naturais inestimáveis, aproximou ciência e literatura e construiu, com palavras e desenhos, uma ponte entre dois mundos.”

 

Saint-Hilaire morreu em sua cidade natal, Orleães, em 1853. Deixou, porém, um legado duradouro: ajudou a revelar ao mundo um Brasil de riquezas naturais inestimáveis, aproximou ciência e literatura e construiu, com palavras e desenhos, uma ponte entre dois mundos — o da curiosidade europeia e o da diversidade sul-americana.

 

(Capa. Vista da baía do Rio de Janeiro das montanhas da Tijuca, Nicolas-Antoine Taunay, cerca de 1820. Reprodução)
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