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Gleb Wataghin e os raios cósmicos: o cientista que ajudou a fundar a física brasileira

De origem russa e formação italiana, Wataghin foi peça-chave na criação da USP e pioneiro nos estudos de raios cósmicos no Brasil.

 

Em 1934, um físico de origem russa, naturalizado italiano, desembarcou em São Paulo sem imaginar que, nas décadas seguintes, seria um dos nomes centrais da formação científica brasileira. Gleb Wataghin (1899–1986) talvez não tenha recebido o mesmo reconhecimento popular de outros cientistas da história, mas seu impacto na física e na estrutura da ciência nacional é comparável ao de figuras fundadoras. Criador do primeiro grupo de pesquisa em física de raios cósmicos no país, orientador de nomes como Cesar Lattes e Marcello Damy, Wataghin ajudou a moldar a espinha dorsal da física experimental no Brasil — e, por consequência, parte relevante da ciência feita por aqui até hoje.

A chegada de Wataghin se insere num momento decisivo: a fundação da Universidade de São Paulo (USP). À época, o Brasil possuía apenas uma universidade — a do Rio de Janeiro, criada em 1920 — e o ensino superior era composto basicamente por faculdades isoladas de Medicina, Direito, Engenharia e Odontologia. Faltava ao país uma formação sistemática em ciências da natureza, algo que a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP buscou suprir. Para tanto, autoridades educacionais, como o matemático Teodoro Ramos, propuseram trazer acadêmicos europeus de renome. A Enrico Fermi foi oferecido o posto de chefe do Departamento de Física, mas ele recusou, indicando em seu lugar um jovem colega da Universidade de Turim em quem confiava plenamente: Gleb Wataghin.

 

“Criou em São Paulo o primeiro grupo de pesquisa em raios cósmicos da América Latina.”

 

A partir desse convite, começa uma história de dedicação incomum. Wataghin não era apenas um físico versátil — capaz de atuar tanto na teoria quanto na experimentação — mas também um professor extraordinário, cuja erudição e sensibilidade física impressionavam colegas e alunos. Era daquele tipo raro que podia dar aulas improvisadas sobre qualquer área da física moderna. Essa bagagem foi essencial para um país sem tradição na área.

 

Formando cientistas

Mas talvez seu maior legado tenha sido sua capacidade de formar cientistas. Criou em São Paulo o primeiro grupo de pesquisa em raios cósmicos da América Latina. A intuição de que esse campo poderia ser fértil por aqui — devido à altitude, ao clima e à posição geográfica — mostrou-se acertada. Em 1940, ao lado de Paulus A. Pompéia e Mário Damy de Souza Santos, Wataghin identificou pela primeira vez os chamados “chuveiros penetrantes” — eventos nos quais um feixe de partículas atravessava grandes espessuras de chumbo, diferentemente dos chuveiros eletromagnéticos então conhecidos. Estavam ali as primeiras evidências dos chuveiros hadrônicos, fenômeno crucial em colisões de altas energias, base de toda uma subárea da física de partículas.


Figura 1. IFGW/Unicamp. Reprodução

 

Esses experimentos marcaram época. Chamaram a atenção de nomes como Patrick Blackett, que indicou a seus orientandos a investigação dos chamados “chuveiros penetrantes”, levando à descoberta das “partículas V”, ou partículas estranhas, cuja análise revolucionaria a física nas décadas seguintes. Outro experimento notável foi realizado com Oscar Sala, em 1945, medindo a seção de choque de interações entre prótons em altas energias — resultado que, feito com equipamento rudimentar, coincidiria com medidas mais precisas décadas depois.

A influência de Wataghin também foi política e institucional. Ficou no Brasil mesmo quando seus colegas italianos foram dispensados, no início dos anos 1940, num contexto de distanciamento da comunidade científica em relação ao fascismo. Com isso, tornou-se figura chave na consolidação da física brasileira, orientando as primeiras gerações de físicos da USP e promovendo a internacionalização da pesquisa. Seu trabalho criou redes de circulação de conhecimento entre Brasil e Europa, num momento em que a ciência brasileira ainda buscava seu lugar no cenário internacional.

A pesquisadora Luciana Vieira Souza da Silva, em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da USP em 2020, traçou esse percurso com profundidade. Partindo do acervo histórico do Fundo Zeferino Vaz (AC/SIARQ), resgatou documentos, cartas e registros que iluminam a atuação de Wataghin. Interessou-se especialmente pelo fato de ele ter sido o único professor italiano da primeira geração da USP a manter seu contrato mesmo após a ruptura com o fascismo, o que revela também o reconhecimento que recebeu de seus pares no Brasil.

Um reconhecimento que, em 1971, foi formalizado pela Unicamp com a concessão do título de Doutor Honoris Causa — o primeiro da jovem universidade. Em sua homenagem, o Instituto de Física da Unicamp passou a se chamar Instituto de Física Gleb Wataghin, nome que ostenta até hoje.

 

“Tornou-se figura chave na consolidação da física brasileira, orientando as primeiras gerações de físicos da USP e promovendo a internacionalização da pesquisa.”

 

Gleb Wataghin voltou à Itália depois de 16 anos no Brasil. Continuou ativo, liderando jovens físicos em Turim, e contribuiu ainda com a chamada “época de ouro” da física de partículas baseada em raios cósmicos. Mas seu legado principal talvez tenha mesmo ficado em São Paulo — não apenas nos artigos científicos, nos experimentos e nas descobertas, mas, sobretudo, nas pessoas. Seus alunos, e os alunos de seus alunos, espalharam-se pelo Brasil, ajudando a construir instituições, departamentos e programas de pós-graduação. A física moderna brasileira deve muito a esse russo-italiano que, com intuição aguçada e compromisso com a formação, ajudou a inventá-la.

 

Capa. IFGW/Unicamp. Reprodução
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