Como iniciativas de agricultura urbana estão transformando São Paulo em um laboratório vivo de saúde coletiva, educação ambiental e justiça social.
Por muito tempo vistas como atividades marginais ou de subsistência, as hortas comunitárias emergem hoje como parte essencial da agricultura urbana — e como resposta direta às crises alimentares, sanitárias e ambientais nas cidades. Do acesso a alimentos frescos à promoção da saúde mental, esses espaços de cultivo coletivo se multiplicam nas metrópoles brasileiras e conquistam o reconhecimento de comunidades, políticas públicas e pesquisadores.
Num cenário urbano marcado por desigualdades, estresse e dificuldade de acesso a alimentos saudáveis, as hortas urbanas promovem uma série de benefícios que impactam diretamente os determinantes sociais da saúde. O cultivo sem agrotóxicos melhora a alimentação e reduz doenças crônicas; o contato com a terra e com o verde diminui o estresse e a ansiedade; e a convivência fortalece vínculos, cooperação e o sentimento de pertencimento.
“As hortas comunitárias deixaram de ser marginais para se tornarem ferramentas potentes de saúde pública, inclusão e sustentabilidade urbana.”
Segundo o Programa Ambientes Verdes e Saudáveis (PAVS), da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, esses espaços também atuam como ferramentas pedagógicas, terapêuticas e preventivas, integrando saúde, meio ambiente e cidadania.
Da política pública ao território
A agricultura urbana representa 20% da produção global de alimentos, segundo a FAO, e é considerada estratégica sobretudo em países de baixa renda. Em São Paulo, a plataforma Sampa+Rural mapeia hoje 747 unidades de produção agropecuária, incluindo 140 hortas urbanas e mais de 1.200 hortas em escolas. Essas iniciativas fortalecem a segurança alimentar, valorizam a agricultura familiar e incentivam circuitos curtos de comercialização — reconectando campo e cidade.

Figura 1. Horta da Cidade, parte do programa Sampa+Rural
(Foto: Prefeitura de São Paulo. Reprodução)
O lançamento do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana em 2023 marcou um passo institucional importante, ao articular ministérios e reconhecer o papel estruturante da agricultura urbana. No entanto, persistem desafios: faltam dados consolidados, acesso a crédito, apoio técnico e o reconhecimento formal dos agricultores urbanos.
Experiências que inspiram
Na comunidade de Heliópolis, a UNAS mantém o projeto “Da Horta para a Mesa”, unindo segurança alimentar, educação ambiental e formação cidadã. Já em Osasco, uma horta atravessa quarteirões, sendo mantida por famílias que produzem, consomem e vendem seus alimentos no próprio bairro.
A ampliação dos circuitos curtos de comercialização abasteceria feiras, escolas e mercados com alimentos locais e frescos. Um estudo do Instituto Escolhas estimou que hortas sustentáveis poderiam abastecer mais de 660 pessoas por ano, gerar 180 mil empregos e suprir feiras com produção de proximidade.
Grande parte dos alimentos consumidos na capital é produzida no Cinturão Verde, em cidades como Mogi das Cruzes, Ibiúna e Sorocaba, e percorre longos trajetos até a Ceagesp, antes de chegar às feiras e mercados. O modelo encarece os produtos e dificulta o acesso para a população mais pobre. A agricultura urbana, ao encurtar esse caminho, oferece alimentos mais acessíveis e saudáveis, além de promover educação e integração comunitária.
Um mapa vivo na cidade
Segundo a Secretaria do Verde e Meio Ambiente, há pelo menos 103 hortas urbanas registradas em São Paulo. Elas ocupam terrenos baldios, praças e até lajes de edifícios. Algumas garantem o sustento de famílias, outras funcionam como laboratórios vivos para pesquisas. Muitas se consolidam como espaços simbólicos de resistência à lógica da cidade excludente e mercantilizada.
A Horta das Flores, na Mooca, existe há 17 anos em um terreno de 7 mil m² à beira da Radial Leste. Mantida por cerca de 30 pessoas, o espaço promove cultivo agroecológico, biodiversidade e educação ambiental, em parceria com universidades e organizações sociais.
Desde 2014, o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU), coordenado pela professora Thais Mauad no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), desenvolve pesquisas, ações de extensão e articulação política sobre o tema. Durante a pandemia, um estudo publicado na Sustainability revelou que, apesar das interrupções nas cadeias de suprimento, nenhuma horta urbana foi desativada — um sinal claro da resiliência dessas práticas frente às crises. Na laje de um edifício da Faculdade de Medicina da USP, uma horta comandada por voluntários serve de apoio à disciplina “Medicina Culinária”, que estimula futuros médicos a refletirem sobre alimentação e saúde.

Figura 2. Horta da Faculdade de Medicina da USP.
(Foto: Cecília Bastos/USP Imagens. Reprodução)
Mulheres e resistência na periferia
Na Zona Leste, mulheres são protagonistas da agricultura urbana. A Associação dos Agricultores da Zona Leste (AAZL), com cerca de 40 membros, promove práticas agroecológicas com preços acessíveis. Estudos acadêmicos mostram que essas hortas, além de alimentar, educam, acolhem e criam redes de apoio social.
Na periferia paulistana, a força vem da comunidade. Plantar é também resistir. As hortas urbanas fomentam o engajamento político e a reapropriação dos espaços públicos. Esses espaços despertam uma “potência de agir”, fortalecendo redes de solidariedade e participação cidadã.
“Mais do que plantar alimentos, as hortas urbanas cultivam pertencimento, resistência e novos modelos de convivência nas grandes cidades.”
Embora os desafios persistam — como falta de segurança jurídica, insumos e apoio técnico —, as hortas mostram que uma outra cidade é possível. Como dizem os próprios agricultores: cuidar da terra é cuidar da vida.
Em São Paulo, entre o concreto e o asfalto, brotam sementes de transformação. As hortas comunitárias não apenas alimentam: elas ensinam, curam, resistem e imaginam futuros mais justos. E mostram, com todas as letras e folhas, que plantar é um gesto radical de esperança e reexistência.


