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Sustentabilidade no prato

Entre a fome e a abundância, cresce a busca por sistemas alimentares mais sustentáveis, justos e saudáveis nas metrópoles brasileiras.

 

No Brasil, a urbanização é uma realidade consolidada: segundo o Censo de 2022 do IBGE, 177,5 milhões de pessoas — 87,4% da população — vivem em áreas urbanas, enquanto apenas 25,6 milhões permanecem em zonas rurais. Esse dado acompanha uma tendência global. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de quatro bilhões de pessoas residam hoje em cidades, marca que ultrapassou metade da população mundial em 2007. Essa concentração urbana pressiona os sistemas alimentares e evidencia a necessidade de pensar em modelos mais justos e sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos.

Ao mesmo tempo, o desafio da fome continua central. O relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2025, lançado em julho por cinco agências da ONU, estima que 8,2% da população mundial — cerca de 673 milhões de pessoas — enfrentaram a fome em 2024. No Brasil, o mesmo relatório trouxe uma conquista simbólica: o país saiu do “Mapa da Fome” após reduzir a subnutrição para menos de 2,5% entre 2022 e 2024, limite estabelecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Ainda assim, 28,5 milhões de brasileiros permaneciam em situação de insegurança alimentar nesse período, dos quais 7,1 milhões em estado grave e 21,4 milhões em moderado. Além disso, cerca de 50 milhões não tinham acesso a alimentos saudáveis.

Esses números refletem as contradições de um sistema alimentar que, apesar de ter ampliado a produção de alimentos desde a segunda metade do século XX, segue marcado por desigualdades sociais e ambientais. De um lado, houve diversificação da oferta e avanços no combate à fome; de outro, aumentou a pressão sobre os recursos naturais e a disseminação de dietas baseadas em ultraprocessados ricos em açúcar, sódio e gorduras prejudiciais à saúde. A Carga Global de Morbidade aponta a má alimentação como um dos principais fatores de risco para mortalidade e doenças crônicas, resultado direto de escolhas alimentares moldadas pelo sistema.

Do ponto de vista ambiental, os impactos mais críticos estão associados ao desperdício, ao uso intensivo de água e solo, à energia consumida no transporte e processamento e às emissões de gases de efeito estufa, sobretudo da produção de carnes e laticínios. É nesse contexto que ganha força o conceito de alimentação sustentável, que une saúde humana, justiça social e preservação ambiental. Como define Nathalia Sernizon Guimarães, professora do Departamento de Nutrição e do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trata-se de “uma alimentação que faz bem tanto para a saúde das pessoas quanto para o planeta”. No Brasil, experiências como restaurantes populares, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e iniciativas de bancos de alimentos, como o Mesa Brasil (SESC), mostram como políticas públicas e sociedade civil podem avançar na democratização do acesso a refeições nutritivas e de baixo impacto ambiental.

 

“Na medida em que você tem sustentabilidade, consegue ter maior justiça social e justiça alimentar também.”

 

 

O sistema alimentar sustentável impacta positivamente as dimensões econômica, social e ambiental. Na dimensão econômica, deve beneficiar ou agregar valor à renda dos trabalhadores, gerar lucros para empresas e melhorar a cadeia de fornecimento para os consumidores. No âmbito social, precisa garantir equidade na distribuição do valor econômico agregado, contribuindo para a saúde e nutrição, preservação de tradições culturais, boas condições de trabalho e bem-estar animal. Quanto ao aspecto ambiental, o sistema deve assegurar que os impactos de suas atividades sejam neutros ou positivos, considerando a biodiversidade, a saúde da água e do solo, a fauna e a flora, a pegada de carbono, a pegada hídrica, o desperdício de alimentos e a toxicidade.

“Na medida em que você tem sustentabilidade, consegue ter maior justiça social e justiça alimentar também. Mas é importante salientar que é uma questão de acesso”, explica Cláudia Maria Bógus, professora da Faculdade de Saúde Pública e membro do Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados (IEA), ambos da USP. A pesquisadora destaca que o acesso não se limita ao alimento, mas inclui informação, para que as pessoas possam fazer escolhas adequadas. “Acredito que a horta em diferentes espaços públicos aproxima a população da produção, despertando atenção sobre como se alimentar, o que escolher e o que privilegiar. De alguma forma, isso gera segurança alimentar, ao colocar a questão na pauta”, afirma Cláudia Maria Bógus.

 

Cidades que plantam, comunidades que cozinham

O avanço da urbanização, as mudanças climáticas e a redução das terras aráveis impõem enormes desafios à agricultura. Nesse cenário, valorizar práticas sustentáveis é essencial para garantir a segurança alimentar da população e manter o equilíbrio ambiental. A agricultura urbana surge como uma estratégia cada vez mais relevante para ampliar a produção de alimentos e contribuir para o desenvolvimento sustentável.

As hortas urbanas, assim como outros modelos de produção sustentável, como os sistemas agroflorestais (SAFs), são estratégicas para a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional (SSAN) nos centros urbanos. Esses espaços de cultivo dentro das cidades reduzem a distância entre produtor e consumidor, diminuem desperdícios e emissões de carbono associadas ao transporte, além de oferecer acesso a alimentos frescos e saudáveis. Para a Embrapa, a agricultura urbana envolve não apenas o cultivo de alimentos, mas também ações de conservação de recursos naturais em áreas centrais e periféricas das cidades, estimulando emprego, renda e segurança alimentar. Segundo Nathalia Guimarães, essas hortas “funcionam como uma forma de dar vida a lugares esquecidos da cidade, aproximando as comunidades da natureza e da própria produção de alimentos”.

Os benefícios vão além do prato: hortas comunitárias contribuem para a preservação da biodiversidade, o escoamento da água das chuvas, a melhoria do microclima e a ocupação de espaços ociosos, muitas vezes localizados em áreas vulnerabilizadas. Também ajudam a reduzir desigualdades no acesso a alimentos frescos, enfrentando o racismo ambiental e outros fatores estruturais ligados a renda, gênero ou território. Além de cultivar verduras, frutas e ervas, esses espaços funcionam como plataformas de integração social, educação alimentar e engajamento político, envolvendo mutirões, assembleias comunitárias e diálogos com o poder público.

“Essa transformação acontece por meio da mobilização comunitária e da atuação de movimentos sociais, que organizam e fortalecem iniciativas coletivas. O cuidado cotidiano com a terra e o manejo dos espaços ociosos convertem áreas antes abandonadas em territórios de produção de alimentos, encontros, afetos e saúde”, afirma Adriana Adell, mestra em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da Associação Brasileira de Agroecologia.

De forma complementar, cozinhas comunitárias e solidárias garantem o acesso a refeições nutritivas em territórios vulneráveis, fortalecendo a dignidade e a inclusão social. Essas iniciativas incentivam o aproveitamento integral dos alimentos, o uso de ingredientes locais e sazonais, a redução do desperdício e a eficiência energética. Hoje, mais de duas mil cozinhas solidárias funcionam no Brasil, apoiadas pelo Programa Cozinha Solidária, instituído pela Lei nº 14.628/2023. “Atualmente, essa proposta foi incorporada como política pública federal, denominada Cozinhas Solidárias. Elas são consideradas tecnologias sociais, com o objetivo de produzir e ofertar refeições gratuitas para grupos em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar e nutricional. Para seu funcionamento, é fundamental a participação da sociedade civil organizada, uma vez que essas cozinhas são operadas por voluntários”, explica Adriana Adell. (Figura 1)


Figura 1. As cozinhas coletivas e solidárias asseguram a disponibilidade de refeições nutritivas em áreas vulneráveis, reforçando a dignidade e a inclusão social.
(Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil. Reprodução)

 

O abastecimento das cozinhas ocorre principalmente por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O aproveitamento integral dos alimentos atua como estratégia complementar, reforçando a sustentabilidade do programa. Além disso, a inclusão de Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), que contribuem para a biodiversidade e não estão presentes nas rotas tradicionais de comércio e consumo, pode potencializar ainda mais os benefícios socioambientais.

Organizadas por movimentos sociais e pelo poder público, essas cozinhas não apenas oferecem refeições gratuitas, mas também promovem oficinas de formação, educação alimentar e ações coletivas. Como lembra Cláudia Maria Bógus, cozinhas e hortas “têm um papel de socialização e inclusão, gerando empoderamento e valorização do contato humano, algo essencial para a saúde e para a vida em comunidade”.

Além disso, hortas e sistemas agroflorestais urbanos contribuem para o enfrentamento da crise climática, para a criação de cidades mais resilientes, a prevenção de enchentes e a recuperação ambiental. Também favorecem a geração de renda e a oferta de alimentos sazonais, saudáveis e culturalmente adequados. Todo esse conjunto de benefícios torna essas iniciativas um poderoso instrumento de promoção da segurança alimentar e nutricional.

 

O paradoxo do desperdício: fome e abundância lado a lado

A alimentação sustentável propõe equilibrar produção, consumo e meio ambiente. A ideia é simples: reduzir o desperdício e adotar práticas conscientes — do planejamento das refeições ao reaproveitamento de sobras, passando pela doação de excedentes. Mas seu impacto vai muito além da cozinha: envolve segurança alimentar, economia de recursos e diminuição das emissões de gases de efeito estufa.

No Brasil, os números expõem um paradoxo difícil de ignorar. Segundo o IBGE, mais de 64 milhões de pessoas convivem com restrições no acesso à comida. Ao mesmo tempo, o país desperdiça mais de 55 milhões de toneladas de alimentos por ano ao longo de toda a cadeia produtiva. Ou seja, um dos maiores produtores de comida do mundo também está entre os dez países que mais desperdiçam, segundo a FAO. (Figura 2)


Figura 2. Brasil desperdiça mais de 55 milhões de toneladas de alimentos por ano ao longo de toda a cadeia produtiva.
(Foto: TV Brasil. Reprodução)

 

No cenário brasileiro, políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional têm demonstrado resultados concretos. Em 2025, o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome da ONU. Entre as iniciativas recentes, destaca-se o Programa Alimenta Cidades (2023), que amplia a produção, a disponibilidade e o acesso a alimentos saudáveis, priorizando territórios periféricos urbanos e populações em situação de vulnerabilidade. Essa política fortalece sistemas alimentares locais e sustentáveis, contribui para reduzir desigualdades e reafirma o direito humano à alimentação adequada, alinhando as políticas nacionais aos princípios de segurança, justiça alimentar e justiça climática. “A justiça alimentar, por sua vez, refere-se ao direito de todas as pessoas de se alimentarem adequadamente. A fome e a má alimentação afetam de maneira desproporcional mulheres, populações negras, indígenas e pessoas em situação de pobreza. Essa desigualdade se apoia em estruturas históricas de racismo, patriarcado e desigualdade de classe, sendo necessário enfrentar essas questões em sua raiz para garantir a justiça alimentar”, afirma Adriana Adell.

O problema, no entanto, não é exclusivo do Brasil. Em escala global, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estima que 1,05 bilhão de toneladas de alimentos foram descartados em 2022 — perda equivalente a quase um quinto de toda a produção mundial. Quando um alimento vai para o lixo, não é apenas ele que se perde: toda a água, energia e insumos utilizados em sua produção também são desperdiçados. Segundo a PNUMA, o custo econômico global da perda e do desperdício chega a US$ 1 trilhão por ano. As consequências ambientais também são expressivas. O desperdício de alimentos responde por 8% a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa, além de contribuir para a degradação do solo, o consumo excessivo de água e a queima de combustíveis fósseis.

 

“O cuidado cotidiano com a terra e o manejo dos espaços ociosos convertem áreas antes abandonadas em territórios de produção de alimentos, encontros, afetos e saúde.”

 

Para Nathalia Guimarães, enfrentar o problema é uma questão de justiça social e ambiental: “O enfrentamento do desperdício de alimentos torna-se uma estratégia decisiva para a promoção da justiça alimentar, ao transformar o que seria descartado em fonte de nutrição para quem mais precisa, ao mesmo tempo em que diminui os impactos ambientais associados à produção e ao descarte de resíduos orgânicos”.

A legislação brasileira já prevê medidas para reduzir o desperdício. A Lei nº 14.016/2020 regulamenta a doação de excedentes de supermercados e restaurantes. Além disso, iniciativas como bancos de alimentos, cozinhas comunitárias e programas de redistribuição regulada têm ampliado o acesso de populações vulneráveis a refeições de qualidade. Segundo Cláudia Maria Bógus, é preciso ir além: “A política também deve induzir ações e programas importantes, mas sem deixar de fortalecer iniciativas já existentes nas comunidades, garantindo recursos e continuidade”.

“Organismos internacionais, como a FAO, apontam as políticas públicas como a principal força motriz para a transformação dos sistemas alimentares”, afirma Adriana Adell. Isso inclui incentivos à compostagem, campanhas de educação alimentar e capacitação para trabalhadores de restaurantes e serviços de alimentação. São ações que podem transformar hábitos e reduzir perdas desde a produção até o consumo final.

A ciência também é aliada no combate ao desperdício. Tecnologias como embalagens que prolongam a vida útil, sensores de monitoramento de qualidade, sistemas de rastreamento (blockchain) e aplicativos para doação de excedentes já estão em prática em diferentes países. Além disso, o aproveitamento de resíduos para compostagem e produção de biogás abre caminhos para sistemas alimentares mais circulares e sustentáveis.

 

“O enfrentamento do desperdício de alimentos torna-se uma estratégia decisiva para a promoção da justiça alimentar.”

 

No campo social, cozinhas comunitárias desempenham papel fundamental. Elas reaproveitam alimentos que seriam descartados, oferecem refeições acessíveis ou gratuitas e criam espaços de aprendizado e convivência. Para Nathalia Guimarães, esses equipamentos públicos cumprem dupla função: “Eles reduzem o impacto ambiental do lixo orgânico e, ao mesmo tempo, fortalecem a inclusão social, garantindo que pessoas de diferentes condições financeiras possam se alimentar bem”.

Evitar o desperdício dentro de casa é parte da solução, mas não suficiente. O relatório do Pacto contra o Desperdício estima que o Brasil tem potencial de aproveitar 38,6 milhões de toneladas de alimentos — mais do que o necessário para acabar com a fome no país. Para isso, será preciso combinar políticas públicas eficazes, ciência, iniciativas comunitárias e mudanças nos hábitos de consumo. Como resume Cláudia Maria Bógus: “A ciência produz conhecimento, mas precisa dialogar com a comunidade. Muitas vezes, são as experiências locais que apontam caminhos para soluções mais duradouras”.

 

Capa. Horta da ONG Cidades sem Fome na Zona Leste de São Paulo.
(Foto: Fellipe Abreu/Mongabay. Reprodução)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
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