Enquanto aguardam por políticas mais transparentes e participativas da prefeitura e do governo estadual de São Paulo, moradores do Jardim Pantanal tentam sobreviver às inundações do Rio Tietê
No dia 3 de fevereiro, a região do Jardim Pantanal, distrito localizado na zona leste de São Paulo, enfrentou um cenário de inundações. A água na altura dos joelhos tem se tornado cada vez mais comum para quem vive há 30 anos nas várzeas do Rio Tietê. Entretanto, segundo moradores, o território está enchendo com mais rapidez e o poder de destruição das chuvas também cresce exponencialmente.
Em 2010, a região ficou alagada por mais de 40 dias. Agora, em 2025, as estimativas variam entre uma semana e dez dias. Na força da chuva, moradores viram de móveis a casas escorrerem pelo ralo. Parte da população desabrigada recorreu a parentes e vizinhos, escolas ou abrigos construídos pela Defesa Civil. Ao retornarem, encontraram lixo, destruição e até multas ambientais no valor de R$ 5 mil.
“No Jardim Pantanal existe um conflito entre a forma de produção da cidade e a questão ambiental. As soluções empregadas mais recentemente pelo Estado e pela Prefeitura de São Paulo invisibilizam esse conflito e tratam a questão como algo meramente técnico. Ali, a gente tem uma histórica ocupação da várzea do Rio Tietê, mas ninguém faz a correlação, por exemplo, de que essa ocupação deriva de uma ausência de política habitacional, seja municipal ou estadual. Então, o direito à moradia não é aplicado, não é garantido, e isso empurra a população para uma área que, em geral, é mais precária ou inapta à ocupação, porque está fora do mercado imobiliário, portanto, é barata, de fácil ocupação, e aí essa população vai para lá. Esses elementos precisam ser cruzados”, pondera Jeferson Tavares, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU/USP).
Jeferson Tavares ressalta que o Jardim Pantanal é palco de uma incongruência das políticas setoriais, ou seja, quando se tem uma série de políticas urbanas que não atuam conjuntamente, como políticas de drenagem, de saneamento e até de transporte e moradia. “São diferentes setores da política pública que vão se acumulando no território e não conversam entre si, e aí uma vira barreira para a outra. Isso vai intensificando esses conflitos que eram potenciais e que emergem principalmente para quem está na ponta mais fraca, que são os moradores. Os moradores foram empurrados para lá, não é uma escolha: ‘ah, eu vou morar na várzea do Tietê, onde alaga a cada chuva mais intensa’. Isso é uma falta de opção, na verdade. É uma falta de opção porque não há política pública para isso, não há política pública habitacional. As ausências e presenças de políticas setoriais levam a essa condição.”
“No Jardim Pantanal existe um conflito entre a forma de produção da cidade e a questão ambiental.”
De fato, existe uma série de políticas e de ausências que ajudam a dimensionar a realidade do Jardim Pantanal. O trecho do Tietê que passa pelo território, por exemplo, ficou dez anos sem limpeza. Quando o Governo do Estado de São Paulo retomou essas atividades, em março deste ano, foram retiradas mais de 150 carcaças de carros, que estavam criando uma barragem subaquática e intensificavam as inundações. Outra questão é que a obra de drenagem do Rio Tietê na zona leste de São Paulo, sob responsabilidade da gestão municipal, deveria ter sido finalizada em setembro de 2023, mas houve um atraso de cerca de um ano e meio. A construção do pôlder, que é um recurso usado para evitar inundações em áreas próximas a beiras de rios, começou somente em fevereiro deste ano.
Jeferson Tavares comenta que um grande problema é que projetos políticos tendem a olhar somente para o período de cada gestão. Por exemplo, uma política pública tende a ser pensada para ser executada no tempo de mandato daquele prefeito ou governador. Só que políticas habitacionais e ambientais precisam ser políticas estruturantes, pensadas a longo prazo. Inclusive, o professor ressalta que projetos de drenagem do Tietê já existiram aos montes no decorrer da história de São Paulo. “Já existem vários projetos estruturantes de drenagem para evitar esse problema, e esses projetos têm décadas já, não são de hoje. Eles deveriam ter sido construídos, mas não foram priorizados. Então, é o primeiro ponto: colocar esses projetos na ordem prioritária. Por que eles não são construídos? Porque, talvez, eles impeçam o tráfego da marginal Tietê, porque eles não afetam outras classes sociais. Os seus impactos estão sob uma camada [da população] que aparece pouco, do ponto de vista da importância que o Estado dá.” (Figura 1)

Figura 1. Há décadas, moradores do Jardim Pantanal (SP) sofrem com recorrentes inundações
(Foto: Letycia Bond/ Agência Brasil. Reprodução)
Pressionada a lidar com a realidade de inundações do Jardim Pantanal, a Prefeitura de São Paulo apresentou uma solução cerca de três meses após a cheia do Tietê em fevereiro. Em conjunto com o Governo do Estado de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes anunciou em maio o projeto Renova Pantanal, que visa demolir mais de 4.300 imóveis irregulares e conter os impactos das chuvas. Para a população local e especialistas, uma medida que carece de transparência, estudos e diálogo.
Na primeira fase do Renova Pantanal, prevista para início em julho — o que não ocorreu — a Prefeitura iria começar com o isolamento de uma área e a retirada de mil imóveis para a construção de um gabião, um tipo de muro de contenção feito com malha de aço e pedras. A previsão é que este muro tenha um metro de altura e 4,2 km de extensão. Já na segunda fase, prevista para iniciar em novembro de 2026, mais mil imóveis seriam demolidos até maio de 2028. Por fim, na terceira e última fase, a previsão é a retirada de 2.344 imóveis da região entre o período de julho de 2028 a dezembro de 2029. O orçamento previsto para o Renova Pantanal é de R$ 700 milhões.
“As remoções ou aluguel social são soluções que estão colocadas como algo definitivo. Mas houve uma consulta local a respeito delas? Isso é urgente. É necessário tal nível de remoção desse conjunto de pessoas sem consulta? Sem perspectiva de outras soluções? Acredito que há outras alternativas já consolidadas no campo do planejamento urbano e regional há décadas, mais de 40 anos, que mostram outros caminhos possíveis e muito mais adequados”, pondera Jeferson Tavares.
Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo, a gestão do prefeito Ricardo Nunes estudou outras alternativas antes de desenhar o projeto do Renova Pantanal. A primeira era a criação de uma obra de macrodrenagem envolvendo um dique, sete reservatórios, um parque e um canal de 5,5 km para desviar a água da chuva. Este conjunto de ações custaria R$ 1,02 bilhão e precisaria remover 484 famílias. Já outra alternativa envolveria a construção de um canal e a abertura de lagoas para a acumulação de águas, além de medidas para reversão do fluxo do Rio Tietê. Este projeto era chamado de “ações intermunicipais integradas para o controle de inundações Cidade-Esponja Pantanal”, custaria aproximadamente R$ 1 bilhão, mas seu orçamento seria dividido com a cidade de Guarulhos. Nele, não haveria a necessidade de desapropriações. Ricardo Nunes, inclusive, afirma que retirar as famílias é a melhor solução econômica também. Mas existem estudos da própria Prefeitura, realizados pela Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb), que mostram que retirar famílias de áreas alagadas é opção mais cara. (Figura 2)

Figura 2. Situado no Distrito Jardim Helena, extremo leste de São Paulo, o Jardim Pantanal está inserido em uma área ambientalmente frágil na várzea do rio Tietê.
(Foto: Jorge Maruta/ USP Imagens. Reprodução)
Políticas de se ouvir e políticas para participar
Caique Bodine é mestrando em Planejamento Urbano pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design da Universidade de São Paulo, a FAU-USP. Ele integra o LabCidade, um laboratório que estuda a confluência entre crise climática, crise habitacional e a ideia de risco, como o risco passa dentro desses diversos campos. Nesse sentido, a pesquisa de Bodine olha essencialmente para o Jardim Pantanal. “O Jardim Pantanal se mostra um estudo de caso interessante, porque ele apreende esse risco ambiental e parece ser entendido como uma questão técnica. A gente está estudando um pouco mais a fundo para entender se é realmente isso, se é só uma questão da ocupação do solo, de infraestrutura, ou se tem uma questão urbana também, uma questão das dinâmicas da própria economia da cidade.”
“O Jardim Pantanal se mostra um estudo de caso interessante, porque ele apreende esse risco ambiental e parece ser entendido como uma questão técnica.”
Assim como Jeferson Tavares, Caique Bodine também questiona a política contínua de remoções na área. “Às vezes, o poder público, e até a opinião pública, acaba indo para o lado de que a simples remoção das pessoas por si só seria a solução desse problema. Só que são pessoas que estão em um processo muito vulnerável, famílias que têm muita fragilidade econômica, fragilidade social e, por conta disso, acabam sendo obrigadas a se deslocar para outros locais que também são na beira do rio, também são áreas de produção ambiental, áreas sujeitas a enchentes. No próprio Jardim Pantanal, já houve tentativas de remoção anteriores, mas as pessoas não foram encaminhadas para algum atendimento habitacional definitivo, não houve nenhum processo de acolhimento por parte do poder público. Consequentemente, essas pessoas mudaram de novo para o Pantanal, retornaram para a área de risco, ou acabaram se deslocando para outros locais da cidade que também têm problemas de infraestrutura.”
O LabCidade mantém um projeto chamado Observatório de Remoções, que há mais de 10 anos identifica, cartografa e analisa ameaças, remoções e despejos forçados de indivíduos e grupos na Região Metropolitana de São Paulo. No caso da pesquisa de Caique Bodine, ele e demais pesquisadores vêm acompanhando a realidade do Jardim Pantanal e, inclusive, acompanharam de perto quando a prefeitura anunciou o Recupera Pantanal. “O Recupera Pantanal propõe a remoção dessas famílias, mas de uma maneira muito vaga, uma maneira que não explica ainda com precisão o que vai ser feito na área depois e quais são os processos de infraestrutura que vão ser levados. Porque existem diversos projetos anteriores que já previam obras naquela região para mitigar enchentes e alagamentos, seja a construção de parques lineares, de pôlderes ou piscinões. Mas a prefeitura não justificou porque ela não escolheu nenhuma das alternativas e acabou escolhendo a remoção.”
Outra questão apontada pelo pesquisador é a ausência de diálogo com a população local. Após o anúncio oficial do Renova Pantanal feito em um evento aberto à imprensa, a comunidade foi chamada para uma audiência pública, mas esta comunicação se deu quando todas as decisões da Prefeitura e do Governo do Estado já estavam tomadas. “A audiência pública tem uma estrutura muito diferente. Ela tem um caráter expositivo, eu mostro um projeto já feito e a comunidade pode tirar dúvidas sobre esse projeto. É diferente de um projeto elaborado de fato em conjunto com as pessoas, entendendo quais são as particularidades daquele território, quais são as vulnerabilidades a que essas pessoas estão expostas, quais são os vínculos que elas têm com aquele espaço e quais são as alternativas que se tem na mesa. Acho que quando o poder público só apresenta [uma política] de cima para baixo, sem consultar as pessoas que de fato moram ali, torna-se um projeto um pouco problemático”, explica Caique Bodine.
A ausência de diálogo com os órgãos políticos, principalmente com a Prefeitura de São Paulo, é a principal reclamação de Vagner Moura, um dos moradores do Jardim Pantanal. A situação é tão obtusa que os próprios moradores estão se organizando para acionar judicialmente o poder público. “Eles estão oferecendo duas propostas, auxílio e indenização ou atendimento definitivo de moradias. Auxílio é uma indenização regida pela lei n.º 17.777, que foi sancionada pelo próprio prefeito Ricardo Nunes e limita indenizações de até R$ 60 mil. Já esse atendimento definitivo de moradia, eles não falam, mas as condições para a entrega são via financiamento. Só que não sabemos quais as condições desse financiamento, se é baseado no programa [habitacional] Pode entrar, da prefeitura, ou no Casa Paulista, do Governo do Estado.”
Vagner Moura também denuncia que o poder público não fala o prazo para entrega dessas novas residências e nem em quais locais elas se encontrarão. Também aponta o baixo valor oferecido às famílias removidas — entre R$ 400 e R$ 600 por mês — que não custeia um novo aluguel. “Na verdade, as alternativas que se têm são a indenização ou você ficar em um eterno auxílio aluguel sem saber se vai receber e como vai receber essa moradia.”
Imbróglios políticos
Além da questão ambiental e habitacional por si só, o Jardim Pantanal também é cenário de diversas articulações políticas, afetando diretamente os moradores. Na primeira semana de abril, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) visando investigar as causas dos alagamentos no Pantanal. Segundo a proposta, encabeçada pelo vereador Alessandro Guedes (PT), a CPI tem dois focos de investigação: O primeiro é o fechamento da barragem da Penha durante as cheias do Rio Tietê, uma decisão realizada pela atual gestão estadual, comandada por Tarcísio de Freitas. A barragem é administrada pela SP Águas, agência subordinada ao Governo do Estado, e que tem, entre as suas funções, o objetivo de regular a vazão do Tietê. O governo, inclusive, alega que tal medida não tem relação com as inundações na região. Já a segunda medida para investigação é uma intenção apresentada pelo prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, de remover moradias e multar construções consideradas irregulares, o que corrobora com denúncias realizadas por moradores da região. Apesar da aprovação da CPI, o que se viu em seguida foram movimentações para que ela não saísse do papel. Autor da proposta, o vereador Alessandro Guedes chegou a denunciar uma possível articulação do prefeito Ricardo Nunes com os vereadores de sua base aliada para que eles não indicassem representantes que pudessem compor esta CPI. A Prefeitura de São Paulo negou tal articulação.
“Ao invés de se pensar em soluções para os eventos extremos de forma isolada, por municípios, precisa-se pensar coletivamente.”
Uma semana depois da aprovação da CPI, vereadores do PT e do PSOL, partidos de oposição a Nunes, acionaram a Justiça para que a CPI fosse implementada. Após a ação, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu um prazo até 30 de abril para que a Câmara Municipal a instaurasse — ela deveria ter sido instaurada até o dia 17 daquele mês. Apesar da interferência do Tribunal de Justiça de São Paulo, a Câmara não cumpriu o novo prazo. A CPI para investigar as causas de alagamento do Jardim Pantanal foi aberta somente no dia 4 de setembro. Com a sua abertura, também foram aprovados 10 requerimentos que convidam autoridades políticas, entidades da sociedade civil e órgãos públicos a participarem de suas reuniões.
Até o fechamento desta reportagem, a CPI realizou uma segunda reunião, no dia 11 de setembro. Nela, foram aprovados mais 55 requerimentos, entre convites a representantes e pedidos de informações ao Poder Executivo e ao Tribunal de Contas de São Paulo. A CPI também prevê conversas com o prefeito Ricardo Nunes, o governador Tarcísio de Freitas e com o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo a vice-presidente da CPI, a vereadora Marina Bragante (REDE), a Comissão está recolhendo informações para entender quais são as melhores tratativas cabíveis aos moradores e alinhadas à natureza. “A gente está tentando levantar com a Prefeitura, com o Estado e com diferentes órgãos, o que já foi feito para o Jardim Pantanal, quanto já foi investido, quais projetos foram destinados para a região e quantas famílias já estão no Cadastro Único [para Programas Sociais]”, disse em nota da Câmara de São Paulo.
Outra questão política envolve diretamente a realocação da população do Jardim Pantanal. Com o início dos debates orçamentários para 2026, via Lei de Diretrizes Orçamentárias, o prefeito Ricardo Nunes recusou 127 propostas encabeçadas por vereadores — entre elas, uma que destinava verbas para a construção de 5 mil moradias destinadas às famílias que residem em áreas de alagamento no Pantanal. Para Jeferson Tavares, o caso do Jardim Pantanal impulsiona a reflexão de alternativas. Uma delas é a criação de uma autoridade nacional voltada à habitação e com articulação nos 27 estados e nos mais de 5 mil municípios do País, para integrar os debates sobre. Outra sugestão é o estímulo a consórcios climáticos, que também olhem para as políticas usando os conhecimentos científicos e, principalmente, de forma integrada entre regiões. “Ao invés de se pensar em soluções para os eventos extremos de forma isolada, por municípios, precisa-se pensar coletivamente. Por exemplo, olhando o Estado de São Paulo: o que a cidade de São Caetano faz, a cidade de Santo André recebe as consequências; o que São Paulo faz, São Caetano recebe as consequências. No nível em que estamos de urbanização no País, não dá mais para pensar em políticas municipalistas isoladas”, conclui.
Capa. Falta de diálogo e de políticas públicas agrava situação de moradores em bairro vulnerável de São Paulo
(Foto: Rafael Pereira Martins/ Alesp. Reprodução)


