Às vésperas da COP30, artistas, cientistas e comunidades amazônicas constroem novas linguagens para pensar a crise ambiental.
Em meio a negociações técnicas e relatórios extensos, expressões artísticas ganham protagonismo no caminho para a COP30, revelando dimensões sensíveis da crise climática e abrindo novos espaços de diálogo entre ciência e arte. Em meio a negociações técnicas, relatórios extensos e gráficos projetados em telões, um outro tipo de discurso começa a ocupar espaço no caminho até a COP30, marcada para acontecer em Belém, a partir de 10 de novembro de 2025. São vozes que não ecoam nas plenárias oficiais, mas em palcos improvisados, nas ruas, nas aldeias e nos centros culturais. Performances, instalações e intervenções urbanas dão corpo a emoções e visões de mundo que dificilmente cabem em tabelas de emissões ou metas de descarbonização.
“A arte possui o poder de revelar o que a ciência, por mais precisa que seja, não alcança: a dimensão afetiva, simbólica e ética da crise climática”, afirma Suzete Venturelli, artista e professora do programa de pós-graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi. Para ela, a arte é uma prática estética comprometida com a transformação social e ambiental, capaz de propor novas formas de habitar o mundo e criar zonas de diálogo entre humanos e não humanos.
“A arte possui o poder de revelar o que a ciência, por mais precisa que seja, não alcança: a dimensão afetiva, simbólica e ética da crise climática.”
Enquanto cientistas apresentam dados sobre o aumento da temperatura global ou a perda da biodiversidade amazônica, coletivos artísticos encenam a resistência em performances que misturam rituais indígenas, dança contemporânea e sons da floresta. O gesto artístico transforma o dado científico em cor, som e movimento. “Nesse território da vivência, as emoções e percepções se tornam linguagem. É um ativismo sensível, que convoca o público à participação”, explica Suzete Venturelli. (Figura 1)

Figura 1. Na COP30, coletivos artísticos encenam a resistência em performances que misturam rituais indígenas, dança contemporânea e sons da floresta enquanto cientistas debatem mudanças climáticas.
(Foto: Suzete Venturelli. Reprodução).
Essas intervenções não costumam aparecer nas atas oficiais, mas marcam profundamente quem as presencia. Se em conferências anteriores as imagens icônicas foram as marchas de jovens com cartazes ou o discurso de Greta Thunberg, em Belém é provável que a memória mais duradoura venha das expressões amazônicas. “As manifestações mais significativas da COP30 não constarão nos relatórios, mas nos encontros efêmeros entre humanos e não humanos, à beira dos rios, nas florestas e nas margens da cidade”, diz a pesquisadora. Mesmo invisíveis aos documentos, essas ações se tornam rituais de reconexão, lembrando que o planeta também cria, responde e grita.
Arte, floresta, povos, vida
A arte amazônica carrega uma força singular. Nascida de territórios onde vida, corpo, floresta e espírito não se separam, ela resiste à tradução em linguagens institucionais. “Há algo de intraduzível nessa arte”, afirma Suzete Venturelli. “A arte dos povos originários da Amazônia não fala sobre o mundo; fala com o mundo. Sua presença na COP30 pode lembrar-nos de que o verdadeiro diálogo climático começa quando aprendemos a ouvir as vozes da floresta.”
Nas ruas e aldeias, em rituais e grafites, pulsa uma inteligência coletiva que desafia as fronteiras entre arte, ciência e política. “É nesses espaços não oficiais que se tecem novas formas de imaginar o futuro — não como promessa tecnológica, mas como continuidade da vida em comum”, observa. Citando Ailton Krenak, ela lembra que “adiar o fim do mundo” exige reencantar nossa relação com a Terra e romper com a ideia de que o humano está separado do planeta. (Figura 2)

Figura 2. Em vias públicas e comunidades, em cerimônias e grafites, vibra uma inteligência coletiva que questiona os limites entre arte, ciência e política.
(Foto: Suzete Venturelli. Reprodução).
Nos últimos anos, esse reencantamento vem ganhando força por meio de colaborações entre artistas e cientistas. Para o diálogo ser autêntico, no entanto, é preciso que nenhuma linguagem se sobreponha à outra. “Concordo com Bruno Latour: a ciência não é somente produção de fatos, mas uma prática que negocia mundos e atores, humanos e não humanos. O mesmo se aplica à arte, que projeta mundos possíveis”, explica. O desafio é criar zonas de co-presença e co-experimento, onde arte e ciência se cruzem como iguais, preservando suas complexidades.
A arte como tecnologia do afeto
A arte tem uma peculiaridade: promove uma sensibilização, uma conexão. Ela é uma tecnologia — uma tecnologia do afeto — que gera identificação e convida à empatia, é o que defende Naomi Silman, integrante do LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp). “A arte pode ser vista como uma forma de repensar as próprias atitudes. Em um mundo saturado de informações, a arte se torna o espaço onde processamos e ressignificamos tudo o que recebemos”, afirma.
Para a artista, é urgente criar mais espaços de trocas entre diferentes áreas do conhecimento; e ir além: “é preciso que artistas não falem somente para artistas e que cientistas não conversem apenas entre si”, defende Naomi Silman. A pesquisadora acredita que a arte deve ser reconhecida como necessária não apenas para informar, mas também para sensibilizar. “Ela precisa estar nas escolas, nas universidades e nos espaços públicos — só assim a arte ganhará força e será vista como um caminho possível de comunicação de um tema tão enraizado na ciência e na política”.
“A arte dos povos originários da Amazônia não fala sobre o mundo; ela fala com o mundo”.
Essas perspectivas reforçam a ideia de que, diante da crise climática, arte e ciência não são campos separados, mas linguagens complementares. “Logo, ambas buscam compreender e transformar o mundo — uma pela razão e a outra pela sensibilidade e juntas, podem inspirar modos de existência mais éticos, poéticos e sustentáveis”, conclui Naomi Silman.
Um exemplo dessa convergência é a obra Cyber Marinum, instalação coletiva que integra arte generativa, ciência e ativismo ambiental. Nela, um tanque de água com plantas aquáticas reais é monitorado por sensores que captam dados ambientais, como variação das marés e velocidade dos ventos. Essas informações controlam a iluminação do espaço em tempo real, criando uma experiência imersiva. “Ao observar as mudanças visuais, o público se torna parte ativa do sistema, refletindo sobre seu papel na preservação dos oceanos”, comenta a professora Suzete Venturelli. A obra demonstra como tecnologias criativas podem sensibilizar o público e aproximar a ciência da experiência sensível. (Figura 3)

Figura 3. Exposição década dos oceanos, 2023-2024, CCBB
(Foto: Suzete Venturelli. Reprodução).
Para a professora, enfrentar a emergência climática também passa pela formação de novas gerações de artistas. Inspirada em Paulo Freire, ela defende uma pedagogia crítica, dialógica e situada. “A formação artística deve ir além do domínio técnico. É preciso cultivar a capacidade de problematizar o mundo, compreender as interdependências e atuar de modo ético e transformador. E isso implica em estimular estudantes a dialogar com saberes tradicionais e científicos, além de experimentar linguagens que conectem arte, tecnologia e natureza”, explica.
Em um mundo saturado de imagens, dados e informações, a arte surge como força de desaceleração e reconexão. “Vivemos em uma sociedade de excesso, em que o olhar se dispersa e o contato com a experiência sensível se esgota, a arte desacelera, concentra e reencanta o olhar, convidando à contemplação, à presença e à escuta”, observa Venturelli, evocando Byung-Chul Han.
“Vivemos numa sociedade de excesso, onde o olhar é continuamente disperso e o contato com a experiência sensível se esgota.”
Às vésperas da COP30, talvez a força da arte esteja justamente no que não se pode medir. Relatórios e negociações continuarão indispensáveis, mas é nas ruas, nos rios e nas vozes amazônicas que poderão surgir as memórias mais duradouras do encontro. A história das mudanças climáticas não se escreverá apenas com gráficos e metas — mas também com as imagens, sons e corpos que falaram ao coração quando a ciência já não bastava.
Capa. Intervenções artísticas tomam fachadas do Museu Paraense Emílio Goeldi e dialogam com a COP 30.
(Foto: Agência Gov./ Via Museu Goeldi. Reprodução)


