Mulheres da Amazônia lideram a resistência contra a crise climática e a exploração, unindo a defesa da floresta à luta por direitos e visibilidade
A COP 30, marcada para novembro de 2025 em Belém (PA), será a primeira Conferência do Clima sediada na Amazônia e simboliza a centralidade dos ecossistemas tropicais na agenda climática. Como uma conferência de povos e cidades, ela representa uma oportunidade para o Brasil mostrar liderança ambiental e propor políticas de transição ecológica, trazendo à tona as vozes de quem a habita e protege a região.
Debates sobre justiça climática, conservação das florestas, direitos dos povos indígenas e desenvolvimento sustentável nunca foram tão urgentes. “Ao abordar a crise ecológica planetária, a perspectiva histórica possibilita destacar que um dos problemas fundamentais consiste no questionamento das formas jurídicas, políticas, socioeconômicas e culturais de apropriação e uso de seus componentes ao longo da história, refletida em ações naturais e humanas. Nesse sentido, os povos tradicionais continuaram a ser interpretados e tratados como ‘exceções’ e em processo de extinção”, explica Leila Mourão Miranda, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Ângela Amanakwa Kaxuyana, liderança indígena do povo Kaxuyana, residente na Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, pontua: “Para as mulheres indígenas, a luta é moldada pela necessidade de resistência como povos indígenas, enfrentando exclusão, preconceito e racismo. O fato de nascerem como povos indígenas já é um processo que molda a luta. Além disso, a luta pelo território é fundamental, pois está interligada à necessidade de reafirmar o direito territorial e o reconhecimento do estado para acessar direitos básicos”. (Figura 1)

Figura 1. Ângela Amanakwa Kaxuyana, liderança indígena do povo Kaxuyana
(Foto: GFBV. Reprodução)
Violência e vulnerabilidade
Esse contexto torna a Amazônia um espaço estratégico para alertar sobre os múltiplos riscos (físicos e institucionais) enfrentados por lideranças femininas que vivem e protegem a floresta, principalmente os decorrentes de violências de gênero e dos conflitos socioambientais ligados à defesa territorial. Segundo o Instituto Igarapé, entre 2012 e 2022, foram registrados 765 ataques contra mulheres defensoras da Amazônia no Brasil — incluindo ameaças, prisão e tentativas de assassinato — dos quais 36 casos resultaram em morte.
Esses riscos são especialmente elevados na Amazônia: somente em 2022, foram 12.211 casos de violência física contra mulheres, o equivalente a 33 por dia, segundo dados da Amazônia Legal. As taxas de violência sexual cresceram 34% em cinco anos, e o feminicídio na região é 30% superior à média nacional, segundo o Instituto Igarapé e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM). “A experiência de ser mulher nesse território me atravessa múltiplas questões”, diz Jacqueline Girão, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ativista. “Vivemos a vulnerabilidade diante da presença da mineração, que avança sobre os rios e os corpos das mulheres. São incontáveis os casos de estupro e de prostituição de jovens, muitas menores de idade. Além disso, o garimpo coopta seus filhos e companheiros, envenena os rios e destrói suas roças, além das secas, doenças, a fome e a ausência do Estado. Nesse cenário, as principais lideranças são mulheres, já que a luta pela floresta é, sobretudo, uma luta contra o patriarcado capitalista”.
“Para as mulheres indígenas, a luta é moldada pela necessidade de resistência como povos indígenas, enfrentando exclusão, preconceito e racismo.”
Fatores estruturais como isolamento geográfico (comunidades distantes com pouco acesso a delegacias e redes de apoio) e a falta de infraestrutura estatal dificultam a proteção ou o acompanhamento dos casos e ampliam a vulnerabilidade das mulheres defensoras da floresta. Ao denunciar danos ambientais ou invasões, as mulheres se tornam alvos visíveis de grupos que dependem do avanço ilegal. Somados ao patriarcado e discriminação, o fato de serem mulheres já as posiciona em desvantagem frente às estruturas locais de poder, somados à impunidade histórica, em que poucos casos são investigados ou punidos. “Para uma mulher indígena da Amazônia, do Pará, que tem um histórico de negação de direitos e onde o estado mais contesta territórios indígenas, a luta é ainda mais intensa, vindo de um processo de retomada de território originário após violência”, enfatiza Ângela Amanakwa Kaxuyana. “A necessidade de lutar pela demarcação e reafirmar a existência a partir do reconhecimento territorial é o principal motivador para estar à frente das organizações e furar as bolhas colonialistas que as submetem. Nos territórios e aldeias, as mulheres são quem decidem, mandam e lideram, segurando toda a parte de resistência.”
Resistência que vem das margens
A luta das mulheres indígenas, ribeirinhas e quilombolas da Amazônia é, antes de tudo, uma luta pela vida — a delas, de seus povos e da floresta. Durante as décadas de 1980 e 1990 e como coordenadora do Projeto e Programa de Interiorização do Ensino Superior da Universidade Federal do Pará, Leila Mourão Miranda acompanhou a expansão de grupos femininos reivindicatórios de diferentes segmentos sociais. “Em Serra Pelada, por exemplo, havia uma proibição de entrada de mulheres imposta pelo famigerado ‘major Curió’. A mobilização e a divulgação da resistência repercutiram nacionalmente e elas obtiveram direitos para entrar e trabalhar naquela e em outras minerações. Em todo interior da Amazônia, conheci e vivenciei múltiplas realidades urbanas, rurais e florestais, onde as mulheres atuavam em diversas frentes, consolidando experiências, sugerindo mudanças, adequando-se aos ambientes e às alterações sazonais, incorporando ideias e comportamentos relacionados ao processo de redemocratização vivido no país”, relata.
“A necessidade de lutar pela demarcação e reafirmar a existência a partir do reconhecimento territorial é o principal motivador para estar à frente das organizações e furar as bolhas colonialistas.”
A resistência continua. Exemplos como o de Patricia Gualinga, liderança Kichwa de Sarayaku, no Equador, tornaram-se símbolo internacional ao expulsar uma petroleira do território de seu povo e é uma das vozes originárias mais respeitadas no mundo. Juma Xipaia, cacica do povo Xipaya, no Médio Xingu, sobreviveu a seis tentativas de assassinato e protagoniza o documentário “Yanuni”, produzido por Leonardo DiCaprio, sobre a urgência climática na Amazônia. “Tenho acompanhado de perto a luta de quilombolas e ribeirinhos da região do baixo Tocantins (PA) contra a hidrovia Tocantins-Araguaia, que visa escoar minérios e grãos pelos portos do Pará e, surpreendentemente, acaba de ser aprovada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA). Essa hidrovia vai causar graves problemas ambientais e sociais: os ribeirinhos ficarão sem seu meio de sobrevivência (o rio) devido à dinamitação do pedral do Lourenço — onde muitas espécies desovam — e as secas serão mais severas. À frente dessa luta estão mulheres do quilombo do Tambaí-Açu (Cametá, PA), dentre as quais se destaca a professora Ellen Miranda, minha amiga”, declara Jacqueline Girão. “Impossível não mencionar, também, Alessandra Korap Munduruku, ativista indígena e coordenadora da Associação Indígena Pariri, que denunciou a precariedade das escolas destinadas aos povos tradicionais no Pará e criticou as tentativas do governo estadual, por meio da Secretaria de Educação, de substituir professores por televisores na rede pública de ensino. Sua defesa do território e do ambiente não é só resistência: é uma forma de vida”.
Ecofeminismo: o corpo e o território
A luta ambiental das mulheres indígenas, ribeirinhas e quilombolas da Amazônia é, ao mesmo tempo, uma luta feminista e anticolonial. Esse protagonismo expressa o que muitas chamam de ecofeminismo: um movimento social, político e filosófico cuja perspectiva une corpo e território, denunciando que a violência contra as mulheres e a natureza são duas faces do mesmo sistema de exploração patriarcal. “O ecofeminismo parte da compreensão de que, no capitalismo, gênero, raça, classe e ambiente são consequência dessa forma de pensar e organizar a sociedade que explora, expropria, oprime e reduz a natureza a lucros e mercadorias”, explica Jacqueline Girão. “Somos nós, mulheres — sobretudo negras, indígenas e periféricas — as mais atingidas pelas catástrofes ambientais e climáticas, pois acumulamos jornadas duplas ou triplas e cuidados com crianças, idosos, pessoas com deficiência, alimentação e outras tarefas que o patriarcado naturalizou como nossas obrigações”, reforça. (Figura 2)

Figura 2. Marcha das Mulheres Indígenas luta pela demarcação de terra e contra a violência de gênero.
(Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil. Reprodução)
Este feminismo das florestas nasce do cotidiano da sobrevivência: de quem cultiva, pesca, cuida da água e das sementes. Nesses contextos, as mulheres são guardiãs da biodiversidade e da memória cultural, transformando práticas ancestrais em resistência política. Elas compreendem que a destruição da floresta é a continuação da mesma lógica patriarcal e capitalista que oprime seus corpos e comunidades. Assim, a defesa do território é inseparável da defesa da vida, do cuidado, da autonomia e da dignidade feminina. “A luta das mulheres, a luta feminina, sempre foi invisibilizada na perspectiva do colonialismo. Criou-se um cacicado exclusivamente masculino, pois os homens sempre foram suscetíveis à vulnerabilidade e procurados, o que acabou moldando e invisibilizando a participação das mulheres. As mulheres sempre participaram e estiveram no processo de tomada de decisão, mas essa participação e empoderamento foram invisibilizados, e elas foram marginalizadas, colocadas na margem. Muitos espaços de construção onde participavam as colocavam como secretárias ou em segundo plano, nunca reconhecidas como espaços de poder, decisão, voz ativa e opinião. Essa invisibilidade reflete na permanência e existência dos territórios e na resistência das mulheres”, declara Ângela Amanakwa Kaxuyana.
Desafios e visibilidade na COP 30
Na preparação para a COP 30, diversas iniciativas buscam traduzir o ecofeminismo em políticas públicas e práticas concretas. O Ministério das Mulheres lançou recentemente (2025) o Plano de Ações Integradas Mulheres e Clima, com dez medidas estratégicas para integrar gênero e justiça climática. Entre elas, estão a criação de um protocolo de atenção a mulheres em emergências climáticas, ações de prevenção à violência de gênero e apoio social e econômico durante desastres ambientais. O plano também propõe indicadores globais de gênero e clima, incluindo raça, idade e deficiência, e a vinculação de financiamento climático a metas de cuidado e equidade.
“A luta das mulheres, a luta feminina, sempre foi invisibilizada na perspectiva do colonialismo.”
Além disso, foi criado o curso “Diplomacia Popular: Emergência Climática, Territórios e Gênero”, promovido pelos ministérios das Mulheres e do Meio Ambiente, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB). O objetivo é fortalecer o protagonismo das mulheres e de povos e comunidades tradicionais nas negociações climáticas, valorizando seus saberes locais, uma maneira de promover que mais mulheres amazônicas atuem como interlocutoras e negociadoras no espaço climático global.
O futuro tem raízes
Equilibrar o peso da tradição comunitária com as pressões contemporâneas da crise climática e da exploração econômica é, hoje, um dos principais desafios da Amazônia. As práticas ancestrais das mulheres indígenas, ribeirinhas e quilombolas não são vestígios de um passado imutável, mas tecnologias vivas de resistência e adaptação. Ao mesmo tempo, essas comunidades vivem sob uma dupla pressão: de um lado, o colapso ambiental global, que altera os regimes de chuva, as secas e as colheitas; de outro, as forças econômicas que tentam transformar a floresta em mercadoria.
Diante disso, o equilíbrio possível não está em escolher entre tradição e desenvolvimento, mas em redefinir o próprio conceito de progresso: um progresso que respeite territórios, culturas e o direito de existir em harmonia com a natureza. “A necessidade de equilibrar todo o sistema de conhecimento dos povos indígenas com as novas tecnologias e informações de luta é um desafio. Nem sempre essa conciliação é incluída como parte fundamental do processo”, reforça Ângela Kaxuyana. Ao transformar o cuidado, o plantio e o convívio em atos políticos, elas provam que tradição e inovação podem caminhar juntas. A floresta, quando deixada nas mãos de quem a conhece, ensina que preservar é também resistir, e resistir é reinventar o futuro.
Capa: Mulheres da Amazônia lutam pela defesa da floretas – e pelos seus próprios direitos
(Foto: COIAB. Reprodução)


