Por que as promessas ainda não viraram recursos e o que está em jogo para a Amazônia?
Desde a Conferência de Copenhagen (COP 15, 2009), os países desenvolvidos assumiram o compromisso de mobilizar US $ 100 bi anuais até 2020 para apoiar a mitigação e adaptação nos países em desenvolvimento. A meta foi reafirmada no Acordo de Paris (COP 21, 2015) e novamente no “book‑of‑rules” (livro de regras) da COP 26, em Glasgow. Um relatório da OCDE apontou que o aporte efetivo foi de US$ 115,9 bilhões, atingindo finalmente a meta, somente em 2022. No entanto, quase 70 % desse montante chegou na forma de empréstimos onerosos, não de doações, agravando a dívida externa dos países mais vulneráveis.
“Há muita burocracia e custo de transação na operação dos bancos multilaterais e agências de cooperação.”
Pedro Luiz Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) e revisor de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), destaca: “há um impedimento para os países pobres, países insulares, sendo a necessidade de equipes técnicas para fazer uma formatação adequada dos projetos e evidenciar para quem vai ceder os recursos, seja a fundo perdido, juros subsidiados, ou mesmo como investimento, que aqueles recursos serão aplicados adequadamente.” Ele acrescenta que, além da preparação técnica, “é necessária uma estrutura de governança e compliance para fazer a auditoria da aplicação desses recursos”. Essa dupla falha — ausência de mecanismo vinculativo e preferência por crédito — impede que as promessas se traduzam em recursos reais.
A burocracia dos fundos multilaterais
Mesmo quando o dinheiro existe, ele costuma ficar “preso” em processos burocráticos. O Fundo Verde para o Clima (GCF) já aprovou US$ 15,9 bilhões em projetos, mas a maioria dos recursos segue um modelo “top‑down”, atravessando múltiplas camadas institucionais antes de chegar às comunidades locais. Gustavo Luedemann, técnico de Planejamento e Pesquisa na Coordenação de Sustentabilidade Ambiental (COSAM) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e membro da Rede Clima, explica: “a maior parte do recurso disponível é onerosa, precisa ser restituída, ao menos em parte, aos fundos. Todavia, temos situações em que empréstimos são fornecidos com dez anos de carência, sem juros e décadas para pagar, taxas de serviços baixíssimas e risco assumido pelo doador.” Ele ressalta ainda que “há muita burocracia e custo de transação na operação dos bancos multilaterais e agências de cooperação”, o que cria gargalos que atrasam a entrega efetiva dos recursos.
Quanto chega realmente às comunidades?
Embora povos indígenas e comunidades tradicionais protejam cerca de 82 % da biodiversidade planetária, segundo Ane Alencar, diretora de ciência no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), “menos de 10 % dos recursos climáticos alcançam as comunidades que estão protegendo florestas e territórios, e isso é um contrassenso. Mecanismos como fundos descentralizados, gestão comunitária e repasses diretos mostram ser possível garantir esse repasse localmente”. A “evaporação” de recursos acontece porque os fundos são distribuídos por governos nacionais que, muitas vezes, carecem de capacidade operacional ou de incentivos para repassar o dinheiro eficientemente.
A Amazônia: risco e oportunidade
A floresta amazônica representa um ativo climático global: sua degradação poderia liberar 300 bilhões de toneladas de carbono, inviabilizando os objetivos do Acordo de Paris. Falta de financiamento coloca a região à beira de um ponto de não retorno, onde a perda da cobertura florestal desencadearia efeitos climáticos catastróficos. Entretanto, a própria Amazônia pode gerar receita. O Tropical Forest Forever Facility (TFFF) propõe um financiamento misto de US$ 125 bi, combinando capital soberano, filantrópico e privado, remunerando as nações tropicais com US$ 4 por hectare de floresta mantida. Como afirma Pedro Luiz Côrtes: “Fundos ou ações como Tropical Forest Forever Facility são ótimos, porque têm a oportunidade de captar recursos, sejam recursos públicos, recursos privados, sobre diversas formas, e dar a garantia de uma aplicação correta, de auditoria sobre a execução.” (Figura 1)

Figura 1. Participantes da COP30 discutem o TFFF
(Foto: Bruno Peres/ Agência Brasil. Reprodução)
Paralelamente, o mercado de carbono jurisdicional (REDD+ Jurisdicional) estima que os estados da Amazônia Legal poderiam gerar entre US$ 10,8 bilhões e US$ 21,6 bilhões em receitas de créditos de carbono entre 2023–2030, com potencial de US$ 1,4 bilhão anuais por estado, considerando um preço mínimo de US$ 10 por crédito.
Por que as promessas permanecem obstruídas?
Os recursos globais são finitos, mas a alocação atual favorece setores que perpetuam a dependência de combustíveis fósseis. Em 2024, os gastos militares globais somaram US$ 2,7 tri, quase o dobro da meta de financiamento climático (US$ 1,3 tri). Além disso, subsídios a combustíveis fósseis chegam a US$ 1,3 tri, valor comparável ao alvo climático. Essa competição de prioridades evidencia que o obstáculo não é a disponibilidade de capital, mas a vontade política de redirecioná-lo. Além disso, há falta de prestação de contas. Sem indicadores claros de desembolso e monitoramento independente, os países do Norte podem alegar cumprimento parcial enquanto a maior parte dos recursos permanece “no papel”. Gustavo Luedemann reforça que: “Não se trata de criar mecanismos novos para o recurso chegar a povos indígenas. Mas, sim, de cumprir as obrigações assumidas e fazer com que todos os agentes tenham voz — informada — na aplicação dos recursos do financiamento climático internacional”.
“Menos de 10 % dos recursos climáticos alcançam as comunidades que estão protegendo florestas e territórios.”
Lucas Ferrante, pesquisador da USP e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), traz uma perspectiva nacional: “O problema do financiamento climático não é apenas a falta de vontade política dos países ricos, mas a ausência de coerência interna nas políticas ambientais do próprio Brasil. Enquanto o governo federal continuar investindo em infraestrutura destrutiva e exploração de combustíveis fósseis, qualquer aporte financeiro externo se tornará irrelevante ou até contraditório.” Ele ainda argumenta que “comunidades tradicionais já possuem economias próprias e que o dinheiro precisa chegar sem condicionalidades e sem impor modelos externos que desrespeitam o modo de vida tradicional”. Ane Alencar aponta a dimensão social da burocracia: “A burocracia e a predominância de empréstimos agravam as desigualdades, porque impõem novas dívidas aos países que menos contribuíram para a crise climática.” (Figura 2)

Figura 2. Financiamentos não chegam às comunidades amazônicas.
(Foto: Divulgação)
O papel da COP 30 em Belém
Como anfitrião, o Brasil tem a oportunidade única de transformar promessas em acordos executáveis. O financiamento climático está preso a um ciclo de promessas não cumpridas, burocracia excessiva e prioridades de gasto desalinhadas. Enquanto isso, a Amazônia, guardiã de bilhões de toneladas de carbono, arrisca-se a se tornar um dos maiores “débitos” da humanidade. Entretanto, a própria crise abre espaço para inovação: financiamento misto, pagamentos por serviços ambientais, mercados regulados de carbono e financiamento direto a comunidades oferecem caminhos para romper a dependência da boa vontade dos países ricos. Se a comunidade internacional conseguir transformar essas ideias em políticas concretas, o futuro da floresta e, por extensão, do planeta, será muito mais seguro. Caso contrário, continuaremos a assistir ao esgotamento de um recurso que, ao mesmo tempo, sustenta a vida e gera riqueza para poucos.
“Não se trata de criar mecanismos novos para que o recurso chegue a povos indígenas, mas sim de cumprir as obrigações assumidas e fazer com que todos os agentes tenham voz — informada — na aplicação dos recursos do financiamento climático internacional.”
Capa. Negociações na COP30 esbarram no financiamento e comprometem avanços para proteção do clima, da floresta e dos povos.
(Foto: Divulgação)


