Reportagem
C&C 4E25 - reportagem - cidades e clima - capa site

Cidades sob pressão: políticas ambientais devem estar na linha de frente do desenvolvimento urbano

Com a COP30 em Belém, nações vivenciaram impactos da emergência climática em suas rotinas, numa tentativa de aprofundar debates sobre território e adaptação do clima.

 

Mais de 2.800 municípios brasileiros — o equivalente a metade do país — já vivem em situação de alta ou muito alta vulnerabilidade climática, segundo a plataforma Adapta Brasil. O dado integra o relatório Cidades Verdes-Azuis Resilientes, lançado pelo Centro de Síntese em Mudanças Ambientais e Climáticas (Simaclim), que reúne evidências científicas e tecnológicas para apoiar governos, empresas e a sociedade na construção de centros urbanos mais preparados diante da crise climática.

As cidades estão hoje no epicentro das mudanças climáticas — simultaneamente como parte do problema e da solução. Embora ocupem menos de 2% da superfície terrestre, concentram mais de 70% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE), impulsionadas sobretudo pela geração de energia, pelo transporte motorizado e pela construção civil. A queima de combustíveis fósseis nesses espaços libera não apenas dióxido de carbono (CO₂), mas também poluentes como monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOx) e compostos orgânicos voláteis (COVs), que agravam o aquecimento global e afetam diretamente a saúde da população. Com cerca de 80% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial concentrado nos centros urbanos, a pressão sobre ecossistemas urbanos e periurbanos é intensa — e tende a crescer, aprofundando riscos sociais, ambientais e sanitários.

A realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP30, em Belém, colocou representantes de mais de 190 países em contato direto com o território amazônico. Ao longo do evento, delegações vivenciaram no cotidiano os efeitos da emergência climática, como calor extremo, chuvas intensas e desigualdades estruturais. A escolha da cidade trouxe um significado adicional à Conferência: o que a experiência concreta de viver com enchentes, ondas de calor e vulnerabilidade urbana pode ensinar ao mundo sobre adaptação climática?

 

“A experiência brasileira, sobretudo nas cidades altamente vulneráveis e expostas que convivem recorrentemente com enchentes, secas e ondas de calor, mostra que adaptação não é apenas uma questão técnica: é uma questão socioeconômica.”

 

Lincoln Alves, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que atua no Ministério do Meio Ambiente (MMA) coordenando agendas relacionadas à resiliência e à adaptação, afirma que a COP30 evidenciou realidades que o Brasil pode compartilhar com a comunidade internacional. “A experiência brasileira, sobretudo nas cidades altamente vulneráveis e expostas que convivem recorrentemente com enchentes, secas e ondas de calor, mostra que adaptação não é apenas uma questão técnica: é uma questão socioeconômica”, afirma. Segundo ele, países como o Brasil têm demonstrado, especialmente ao Norte Global, que a vulnerabilidade climática é distribuída de forma desigual e que respostas eficazes exigem a integração entre planejamento urbano, políticas habitacionais, saúde pública e redução das desigualdades. “Em outras palavras, adaptar cidades não significa apenas construir infraestrutura; significa reduzir risco onde ele é produzido: nas periferias, nos assentamentos informais e nos territórios historicamente invisibilizados pelo planejamento urbano tradicional.” (Figura 1)


Figura 1. As cidades estão hoje no epicentro das mudanças climáticas.
(Foto: Divulgação)

 

Para Lincoln Alves, políticas públicas de adaptação climática precisam reconhecer que os territórios não se resumem a infraestruturas físicas, mas são também espaços de identidade, memória e modos de vida. “No Brasil, essa dimensão é ainda mais relevante porque a relação com o território é profundamente marcada por saberes tradicionais, vínculos culturais e desigualdades históricas, como se observa na Amazônia e no Semiárido nordestino.” Ele defende uma mudança de paradigma: sair de modelos tecnocráticos e lineares e avançar para uma governança multinível, multissetorial e participativa, que incorpore diferentes formas de conhecimento e coloque ciência, evidências e justiça social no centro das decisões.

Desigualdade e prevenção

“O que nós temos que olhar cada vez mais é para a antecipação, para evitar que esses problemas aconteçam, para prevenir — porque a palavra mais certa é prevenir”, afirma Pedro Jacobi, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Estudos do Meio Ambiente e Sociedade no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).

Segundo Pedro Jacobi, há dois atores centrais nesse processo. De um lado, o poder público, responsável por políticas de prevenção, como desassoreamento de rios e manutenção da drenagem urbana. De outro, no pós-desastre, a Defesa Civil, frequentemente sobrecarregada diante da magnitude dos impactos. “Boa parte das cidades do planeta não está preparada para a transformação em curso relacionada aos eventos extremos. Quando chove 200 ou 300 milímetros, como tem ocorrido em várias cidades brasileiras, entramos no pior cenário possível, porque os sistemas de drenagem simplesmente não dão conta”, alerta.

 

“Adaptar não é apenas construir obras: é reduzir desigualdades históricas e proteger modos de vida.”

 

Para avançar em políticas adequadas, Lincoln Alves destaca a centralidade da justiça climática, conceito que assume contornos distintos conforme o território. “Em uma cidade amazônica, justiça climática significa garantir que quem menos contribuiu para a crise climática — povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e populações periféricas — não seja quem mais sofre seus impactos. Isso envolve acesso equitativo à infraestrutura, proteção de direitos territoriais, participação real nas decisões e valorização dos conhecimentos locais. Adaptar, nesse contexto, não é apenas construir obras: é reduzir desigualdades históricas e proteger modos de vida”, afirma.

Apesar dos desafios, experiências comunitárias e iniciativas locais já oferecem caminhos possíveis. “Em algumas cidades amazônicas, observamos uma combinação de iniciativas formais e práticas comunitárias que vêm se consolidando como referências em adaptação urbana”, explica Lincoln Alves. Entre elas estão parques de inundação, soluções de drenagem urbana baseadas na natureza e a restauração de manguezais para lidar com os ciclos hidrológicos, especialmente em cidades como Belém, Manaus e Santarém. Ele destaca ainda o papel da Iniciativa AdaptaCidades, que busca fortalecer capacidades locais, apoiar diagnósticos de risco, desenvolver ferramentas de planejamento e promover governança multinível para integrar a adaptação às políticas públicas municipais e estaduais.

Pedro Jacobi reforça que o problema urbano brasileiro está profundamente ligado à desigualdade. “É uma ocupação desigual e desordenada, muitas vezes em áreas onde não deveria ocorrer. Por omissão ou populismo, o poder público deixa de investir adequadamente em moradia, empurrando a população para condições extremamente precárias e vulneráveis às intempéries.” Para ele, a ciência tem cumprido seu papel, com pesquisas públicas, projetos de extensão universitária e diálogo com gestores. “O que observamos, no entanto, é que muitas propostas consolidadas pela ciência não são incorporadas à gestão pública.”

 

Da floresta às chuvas

Os debates sobre políticas urbanas e ambientais não se restringem à Amazônia. Em Porto Alegre, após a grande inundação de 2024, a prefeitura anunciou a revisão do Plano Diretor do município. Especialistas apontam problemas na proposta, como a redução de espaços democráticos de participação e alterações nos limites urbanísticos sem considerar a emergência climática. Entre os exemplos mais controversos está a autorização para edifícios de até 130 metros em áreas inundáveis — hoje, o limite é de 52 metros.

“Precisamos ser proativos, pois a mudança climática é um processo de aceleração e agravamento, com muitas novidades pela frente. No caso de Porto Alegre, porém, vejo quase nenhuma resposta proativa. Edificações, bairros e equipamentos urbanos precisam ser repensados, não apenas recuperados. Não vejo isso acontecendo”, avalia Demetrio Luis Guadagnin, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). (Figura 2)


Figura 2. Enchente em Porto Alegre em 2024
(Foto: Rafa Neddemeyer/ Agência Brasil. Reprodução)

 

Demetrio Guadagnin destaca que o conceito de resiliência é frequentemente usado de forma vaga. “Em geral, as ações são mais de resistência do que de resiliência.” Segundo ele, resistência significa tentar evitar danos — como reforçar sistemas de proteção contra cheias. Já a resiliência envolve imaginar soluções para que a cidade se recupere rapidamente de novos eventos extremos, reposicionando ou reconfigurando equipamentos, infraestrutura, mobiliário e serviços. “Isso é raro de ver. Adaptação é um passo além da resistência e da resiliência, e é ainda menos considerada na experiência de Porto Alegre. Precisamos adaptar nossas cidades para um cenário climático que continuará se agravando, mesmo que os esforços de mitigação avancem”, alerta.

 

E a COP?

A COP30 deixou um balanço marcado por contrastes. Houve avanços relevantes em temas como justiça racial e de gênero, ampliação da participação social e institucionalização da transição justa. Ao mesmo tempo, os resultados ficaram aquém da urgência imposta pela crise climática, especialmente no que diz respeito à eliminação dos combustíveis fósseis, ao combate ao desmatamento e ao financiamento climático. As divisões geopolíticas tornaram-se explícitas, limitando consensos e travando decisões mais ambiciosas.

 

“A COP30 mobilizou um debate importante sobre adaptação. Pela primeira vez, especialmente em contextos urbanos, a adaptação ganhou centralidade política e visibilidade internacional.”

 

“A COP30 mobilizou um debate importante sobre adaptação. Pela primeira vez, especialmente em contextos urbanos, a adaptação ganhou centralidade política e visibilidade internacional”, avalia Lincoln Alves. Segundo ele, além de decisões formais — como os indicadores globais do Objetivo Global de Adaptação (GGA, na sigla em inglês) e os avanços nos Planos Nacionais de Adaptação (NAPs) — houve uma mobilização social, científica e institucional que consolidou a compreensão de que adaptação não é uma agenda futura, mas uma urgência do presente. “A COP30 não resolveu todos os desafios, especialmente no financiamento, mas elevou o tema, conectou atores e acelerou uma mudança de percepção: adaptação não é mais um capítulo secundário, é um pilar essencial da ação climática global, ao lado da mitigação”, conclui.

Pedro Jacobi destaca que, sob a perspectiva da adaptação, os acordos da COP30 reforçam um ponto central: o financiamento climático. “É fundamental pensar o financiamento numa lógica de antecipação e prevenção.” Para ele, outro desafio é a implementação efetiva das respostas, com prazos mais claros e compromissos concretos, inclusive no âmbito das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs). “O clima não é um problema restrito aos territórios impactados. Ele precisa ser interpretado de forma global. Todos os atores internacionais devem convergir para uma agenda comum: controlar as emissões”, alerta.

 

Capa. Entre enchentes, secas e desigualdades: o desafio de adaptar as cidades brasileiras ao clima extremo
(Foto: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil. Reprodução)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Rafael Revadam

Rafael Revadam

Rafael Revadam é jornalista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), mestre em Divulgação Científica e Cultural e doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Rafael Revadam é jornalista da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), mestre em Divulgação Científica e Cultural e doutorando em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on email
Email
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Palavras-chaves
CATEGORIAS

Relacionados