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Ciência na linha de frente: crise climática, Amazônia e COP 30

COP na Amazônia representa oportunidade histórica para evidenciar que ciência e gestão climática só fazem sentido quando estão alinhadas à justiça territorial e ao protagonismo de quem reside e realiza pesquisas aqui.

 

Domingo, 12 de outubro de 2025. Enquanto o relógio climático corre em ritmo acelerado, um estudo divulgado por cientistas da Universidade de Exeter, no Reino Unido, revela que o planeta acaba de ultrapassar o primeiro ponto de não-retorno com o colapso dos recifes de corais — ou seja, mesmo que ações imediatas sejam tomadas, as mudanças já ocorridas nesse sistema são potencialmente irreversíveis. O aviso deixa um lembrete incômodo: embora as transformações estejam acontecendo diante dos nossos olhos, a crise climática está avançando mais depressa do que as medidas para contê-la. Nesse contexto, a Conferência do Clima da ONU (COP 30) — realizada em novembro, no coração da Amazônia brasileira chega como um chamado para que a ciência não somente alerte, mas também permeie, com mais força, os discursos políticos e as ações efetivas na proteção do planeta. Como dito por Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, em evento preparatório para a Conferência, “é o momento de levar a sério os alertas da ciência”.

A pesquisa da Universidade de Exeter, realizada com a colaboração de 160 cientistas de 23 países, mostra que o aquecimento sem precedentes dos oceanos intensifica o branqueamento dos corais. De acordo com as conclusões de um relatório publicado no final de outubro pela The Earth League, consórcio internacional de especialistas em clima, em 2024, a temperatura média da superfície oceânica ficou quase 1 grau acima dos níveis pré-industriais. O estresse causado pelo calor excessivo faz com que os recifes expulsem as algas que lhes fornecem nutrientes e cores vibrantes e fiquem mais vulneráveis à morte por inanição. A partir de dados coletados por satélites e boias de monitoramento, constatou-se que, desde 2023, 84% dos recifes em mais de 80 países sofreram branqueamento, configurando o pior evento do tipo já registrado.

O colapso dos corais é apenas um entre vários pontos de não-retorno — ou pontos de inflexão — acompanhados há décadas em todo o planeta. Além das águas, o aquecimento também afeta os ecossistemas terrestres, acentuando o derretimento das camadas de gelo e a destruição das florestas tropicais, por exemplo. Em 2024, a média global de temperatura ficou cerca de 1,55 grau acima dos níveis pré-industriais, favorecendo eventos extremos, como secas e ondas de calor, e prejudicando o equilíbrio de diversos biomas. “A gente poderia traduzir o momento atual como a tripla crise planetária que a ONU tem destacado bastante: clima, biodiversidade e poluição”, explica Gabriela Di Giulio, professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

 

A ciência sabe qual será o próximo ponto de inflexão?

A Floresta Amazônica se vê no centro dos monitoramentos sobre pontos de inflexão climática. O estudo da Universidade de Exeter menciona que a maior floresta tropical do mundo está se aproximando do seu próprio ponto de não-retorno, o que significa que, no ritmo atual, o ecossistema pode perder a capacidade de responder às pressões e se regenerar. “Essas alterações podem transformar áreas florestais em ecossistemas modificados, enfraquecendo a regulação climática global, alterando o clima regional e acelerando a perda de biodiversidade”, afirma a pesquisa.

 

“Na Amazônia, tudo está conectado: as áreas agropecuárias, a floresta, os rios, as pessoas, o rural, o urbano… É uma região onde a natureza funciona em rede.”

 

“Na Amazônia, tudo está conectado: as áreas agropecuárias, a floresta, os rios, as pessoas, o rural, o urbano… É uma região onde a natureza funciona em rede”, diz Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Com esse funcionamento integrado, mudanças em pontos específicos, como a cobertura vegetal ou os níveis de precipitação, poderiam causar efeitos em cascata. Segundo uma pesquisa da Universidade de Cambridge, ainda neste século, o desmatamento contínuo pode desencadear uma transição para um estado semelhante à savana em toda a Amazônia. Os resultados são correspondentes a projeções climáticas que simulam uma redução da cobertura florestal para 35% ou uma diminuição de apenas cerca de 6% na precipitação.

Além de colocar em risco a rica biodiversidade desse ecossistema e mais de 23 milhões de pessoas que habitam a região, a ultrapassagem do ponto de inflexão amazônico tem o potencial de causar danos em escala planetária. “A Amazônia recicla cerca de 20 bilhões de toneladas de umidade por dia, influencia o regime de chuvas em grande parte da América do Sul e armazena mais de 150 bilhões de toneladas de carbono”, explica Ane Alencar. Ainda que o papel desse ecossistema seja consenso na literatura científica e que os efeitos da crise climática possam atingir um nível global, as medidas para conter os danos no bioma têm sido insuficientes. “Não se trata de uma lacuna de conhecimento técnico-científico que justifique o atraso ou a negligência nas respostas. Já temos o conhecimento necessário e seria esperado que as ações adequadas fossem acordadas e implementadas nos espaços de negociação”, defende Gabriela Di Giulio, que ressalta que essa lógica pode ser aplicada não apenas à Amazônia, mas também aos demais biomas.

 

Das florestas às mesas de negociação

A fala da pesquisadora aponta que há uma falta de linearidade entre o que a ciência já sabe e o que, de fato, orienta a formulação de estratégias e políticas climáticas. “A produção de mais informações em conhecimento técnico-científico, e mesmo a disponibilização desse conhecimento através de uma boa divulgação científica para os tomadores de decisão, não significa, necessariamente, que esse conhecimento vai ser mobilizado no processo de tomada de decisão”, alega Gabriela Di Giulio. Ela enfatiza que a relação entre ciência e política é atravessada por múltiplos fatores, como interesses econômicos e disputas de poder. “Se partirmos do pressuposto de que a falta de ação para o enfrentamento das crises socioecológicas é apenas uma questão de comunicação, se dissermos que aqueles que estão tomando as decisões não estão bem informados, acho que seríamos ingênuos”, pontua.

Em seu discurso na abertura da Cúpula dos Líderes, evento que antecede a COP 30, Luiz Inácio Lula da Silva endossa o argumento: “a humanidade está ciente dos impactos das mudanças do clima há mais de 35 anos, desde a publicação do primeiro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC (…)”. Ane Alencar concorda. “O que falta não é conhecimento, é espaço político e valorização do olhar local”, diz. Para ela, embora a produção científica seja robusta, nem sempre está vinculada às perspectivas locais. “O Brasil tem um time de pesquisadores de peso que estuda a Amazônia há décadas e sistemas de monitoramento de qualidade, como os do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do MapBiomas. Mesmo assim, o debate global ainda é dominado pela ciência do Norte”, exemplifica.

 

“O que falta não é conhecimento, é espaço político e valorização do olhar local.”

 

Nesse sentido, Gabriela di Giulio defende que um fator relevante para a produção científica ser mobilizada de forma mais efetiva é repensar o modo de produção do conhecimento, tornando-o mais coprodutivo. “Assim, quando uma determinada pergunta for formulada, a resposta para ela não virá apenas da comunidade científica, dos pesquisadores ou dos acadêmicos”, afirma. “Aí, a gente pode pensar quem são os outros atores que vão participar desse processo de coprodução, como representantes da sociedade civil, órgãos governamentais e não governamentais, por exemplo”, acrescenta.

As falas das pesquisadoras estão alinhadas com as recomendações publicadas no estudo da Universidade de Exeter para evitar o ponto de não-retorno amazônico. Os autores do trabalho argumentam que governanças inclusivas e descentralizadas, com apoio de sistemas de conhecimento tradicionais, aos Povos Indígenas e às comunidades em seus territórios e modos de vida, são centrais para reverter o ciclo de degradação instaurado na região. “A COP 30, sendo na Amazônia, é uma chance histórica de mostrar que ciência e governança climática só fazem sentido quando vêm com justiça territorial e o protagonismo de quem vive e pesquisa aqui”, pontua Ane Alencar.

 

Entre números e narrativas

Embora a mitigação da crise climática seja o enfoque central da Conferência do Clima da ONU, e ainda que a ciência chegue aos tomadores de decisão para atuar na linha de frente, o embate entre as necessidades e os objetivos dos 191 países participantes pode gerar conflitos. “Precisamos considerar que há narrativas científicas em disputa e a tomada de decisão, muitas vezes, se alinha àquela narrativa científica mais coincidente com a decisão que está sendo proposta naquele projeto político”, explica Gabriela di Giulio. Segundo ela, a própria natureza da produção científica favorece esse cenário. “A ciência não é homogênea, a comunidade científica não é homogênea. Trabalhamos com diferentes aproximações, perspectivas, entendimentos e até diferentes metodologias”, destaca, ressaltando que esse embate não é, necessariamente, algo negativo, mas parte essencial do processo democrático de construção de consensos e caminhos frente à complexidade do cenário atual.

Entre as múltiplas narrativas e metodologias, a pesquisadora aponta que há dificuldade de rastrear a origem dos dados utilizados na formulação de cada política em debate — ou mesmo daquelas que já estão em vigor. “Embora muitas políticas públicas, em particular na área ambiental, bebam bastante de evidências científicas, ou seja, do conhecimento técnico-científico produzido, em geral, não mencionam nas suas elaborações de onde as informações que subsidiam aquilo vieram. Não temos essa tradição”, explica. Ela comenta que encontrar ferramentas para esse rastreio é uma das propostas do projeto Biota Síntese, do qual participa. “Com isso, tentamos correlacionar e mensurar, de certa forma, os impactos socioambientais do conhecimento que a gente produz”, diz.

 

“A COP em Belém vai ser uma oportunidade de mostrar que aqui existe conhecimento, ciência, inovação e também povos e territórios que já vêm enfrentando a crise climática na prática.”

 

Somada a essa dificuldade, Ane Alencar pontua que, quando se trata da produção científica brasileira sobre o clima e a Amazônia, há também outros desafios. “A ciência brasileira sobre esses temas, apesar de estar cada vez mais presente nos artigos científicos, ainda não tem o reconhecimento que merece nas negociações internacionais de clima”, ressalta. “Por exemplo, temos pesquisadores medindo os impactos do fogo na degradação florestal para a emissão de gases do efeito estufa pelo ar, com satélites, no chão, e alguns dos achados apontam que, por conta da degradação, florestas da Amazônia passaram a emitir mais do que absorver carbono”, afirma. “Apesar desses alertas, os incêndios ainda não têm sido muito discutidos no âmbito da Convenção de Clima, pois, de acordo com as regras do IPCC, não são contabilizados como fontes de emissão de gases do efeito estufa. Isso tem que mudar”, defende. (Figura 1)


Figura 1: Incêndio na Amazônia em 2024
(Foto: Jader Souza/ AL Roraima. Reprodução)

 

Expectativas para a COP 30 e para o futuro

Para a pesquisadora, sediar a COP 30 pode favorecer o posicionamento da ciência brasileira em um local de maior destaque nas discussões sobre clima. “A COP em Belém vai ser uma oportunidade de mostrar que aqui existe conhecimento, ciência, inovação e também povos e territórios que já vêm enfrentando a crise climática na prática”, pontua. De acordo com Gabriela di Giulio, as pesquisas nacionais já têm esse potencial. “Vivenciei um ano sabático na Universidade de York, na Inglaterra, e voltei muito convencida de que o que a gente discute e faz aqui é mainstream”, diz. “A COP 30 é a chance de o Brasil mostrar que pode liderar uma agenda climática baseada em ciência e justiça pelos mais vulneráveis. Proteger a Amazônia é proteger o clima e fazer isso com equidade é o que confere legitimidade à liderança brasileira no cenário global”, prevê Ane Alencar.

A trigésima edição da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas acontece um ano após a realização de seu evento irmão, a COP da Biodiversidade — que passou por sua décima sexta edição. Para Gabriela di Giulio, no entanto, essa divisão não favorece a criação de soluções integradas. “A biodiversidade é parte da solução das mudanças climáticas e está sendo diretamente afetada por elas”, reforça, advogando a necessidade de que, no futuro, as agendas desses dois eventos sejam integradas. (Figura 2)


Figura 2. Biodiversidade amazônica é parte da solução das mudanças climáticas.
(Foto: Agência Senado. Reprodução)

 

Enquanto as Conferências permanecem separadas, Ane Alencar espera que a edição de 2025 traga um novo olhar global para as discussões sobre clima, com uma perspectiva holística e ênfase no papel do bioma em que está sendo realizada. “Quero que essa COP seja o momento em que o mundo reconhece que não existe estabilidade climática global sem uma Amazônia viva e bem governada. Isso significa olhar para a floresta como um sistema diverso, ecológico, social e econômico e investir em soluções que nascem dessa diversidade: bioeconomia, restauração, manejo do fogo, regularização fundiária, gestão territorial e valorização do conhecimento local”, diz. “Se a COP 30 conseguir traduzir isso em compromissos concretos, com financiamento, governança e voz para quem vive aqui, ela vai marcar o início de uma nova fase da política climática mundial, onde a floresta é vista também como solução”, conclui.

 

Capa. Amazônia é central para enfrentar tripla crise planetária atual: clima, biodiversidade e poluição
(Foto: Greenpeace Brasil. Reprodução)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Bianca Bosso

Bianca Bosso

Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
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