Confira entrevista com Wilma de Nazaré Baia Coelho, professora do programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA
Com mais de três décadas de dedicação à educação, à formação de professores e às relações étnico-raciais, Wilma de Nazaré Baia Coelho assumiu em 2023 a Diretoria de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola do Ministério da Educação. Professora e pesquisadora com sólida atuação acadêmica, integra o corpo docente do Doutorado em Rede (Educanorte) e do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB), na Universidade Federal do Pará (UFPA). Ao longo da carreira, esteve à frente de coordenações acadêmicas, recebeu menção elogiosa por sua liderança no Educanorte e consolidou uma trajetória vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAB/UFPA). “A história e a cultura dos povos quilombolas, indígenas e da população negra não são periféricas: elas são parte da história do Brasil”, defende a pesquisadora. Reconhecida por articular teoria, prática e compromisso social, ela traz para o MEC uma agenda voltada à diversidade, à inclusão e à promoção dos direitos humanos. “A pesquisa é um dos caminhos mais consistentes para transformar denúncia em dado, e dado em ação política”, afirma. Nesta entrevista, Wilma Coelho compartilha sua visão sobre os desafios da educação brasileira, a valorização da diversidade cultural e o fortalecimento das políticas educacionais voltadas às comunidades quilombolas e demais grupos historicamente marginalizados.
Ciência & Cultura – Como sua experiência na direção de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola tem influenciado as políticas públicas para a promoção da diversidade e inclusão no ensino brasileiro?
Wilma de Nazaré Baia Coelho – Minha passagem pela Diretoria de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola do Ministério da Educação foi, antes de tudo, uma experiência de transformação. Foi nesse espaço que pude reafirmar a educação como algo muito maior do que a simples transmissão de conteúdos: ela é um pilar para a construção de uma sociedade justa, plural e democrática. Sempre acreditei que a diversidade não deve ser vista como problema, mas como a maior riqueza do Brasil. Nesse sentido, um dos grandes aprendizados foi perceber que não basta “incluir” de maneira superficial grupos chamados de minorias em um sistema que nunca os reconheceu plenamente. O desafio é reestruturar o sistema para que ele valorize, de fato, as histórias, culturas e saberes de quilombolas, indígenas, negros e tantos outros povos historicamente invisibilizados. A escola precisa ser um espaço onde cada identidade seja respeitada e celebrada.
A educação quilombola, por exemplo, nos ensinou muito sobre a força das realidades locais. Não se trata de aplicar um currículo-padrão, mas de construir, junto com a comunidade, um caminho que dialogue com seu modo de vida, fortaleça a identidade e o senso de pertencimento de cada estudante. Na gestão da Política Nacional de Equidade e Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola, conseguimos avançar em três dimensões essenciais: a formação de professores e professoras para lidar com a diversidade de maneira crítica e sensível; a revisão dos materiais didáticos, para que assumam perspectivas inclusivas e combatam estereótipos; e, talvez o mais importante, o diálogo constante e horizontal com as comunidades, porque política pública só funciona quando nasce da escuta e da participação.
Segui esse mesmo compromisso quando estive no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, com a Rede Tecer Direitos Humanos. Essa iniciativa buscou formar agentes públicos, profissionais da educação, da saúde, da segurança, além de movimentos sociais e comunicadores, para que todos tenham em sua prática cotidiana os valores dos direitos humanos. A Rede parte de uma premissa simples, mas poderosa: a democracia só se fortalece quando a diversidade é respeitada e as diferenças são reconhecidas como parte constitutiva da nossa sociedade. O que me move é a certeza de que a educação e os direitos humanos caminham juntos. Ambos são instrumentos de emancipação, de inclusão e de transformação social. E acredito que só haverá mudança verdadeira se ela for plural, construída coletivamente e com profundo respeito às diferenças.
“Política pública só funciona quando nasce da escuta e da participação.”
C&C – Quais os principais desafios enfrentados para garantir a inclusão efetiva da educação quilombola e étnico-racial no currículo escolar brasileiro?
WNBC – Quando penso nos principais desafios, minha experiência como gestora e pesquisadora mostra que eles estão enraizados em questões históricas e estruturais muito profundas.
O primeiro deles é a formação de gestores e professores. Muitos não tiveram, em sua formação inicial, a oportunidade de estudar de forma consistente a história e a cultura afro-brasileira, africana e quilombola, mesmo depois da aprovação da Lei 10.639/2003, alterada pela Lei 11.645/2008. Isso faz com que se sintam inseguros ou abordem o tema de maneira superficial, às vezes até reforçando estereótipos. Por isso, sempre defendi que a formação continuada seja um espaço de fortalecimento, para oferecer não só conteúdo, mas também a sensibilidade necessária para lidar com essas questões de forma crítica, fundamentada e respeitosa.
Outro desafio é a resistência institucional e social. Muitas vezes, ainda se trata a educação quilombola e étnico-racial como algo “extra”, quase como um anexo ao currículo ou restrito a datas comemorativas. Essa visão é equivocada. A história e a cultura dos povos quilombolas, indígenas e da população negra não são periféricas: elas são parte da história do Brasil. Torná-las centrais no currículo é um processo de descolonização que exige coragem e compromisso de toda a comunidade escolar. E, claro, há a questão dos recursos e da continuidade das políticas públicas. Não podemos depender apenas da boa vontade de gestores de ocasião. Para que a educação quilombola e étnico-racial se torne realidade de forma consistente, é preciso que haja políticas de Estado, com orçamento, financiamento e apoio permanentes às escolas e comunidades. Sem isso, cada avanço corre o risco de se perder com a mudança de governo.
O que aprendi ao longo dessa caminhada é que superar esses desafios exige perseverança e trabalho coletivo. É um processo de construção diária, que demanda diálogo com as comunidades e compromisso político de todos nós. Mas acredito que, passo a passo, estamos pavimentando o caminho para uma educação verdadeiramente transformadora, que reconheça e celebre a pluralidade do nosso povo.
C&C – Na sua opinião, qual o papel da formação de professores na construção de uma educação mais plural e antirracista?
WNBC – No meu modo de ver, a formação inicial e contínua de gestores e professores é o coração de uma educação mais plural e antirracista. Sempre digo que o educador é a ponte viva entre as políticas públicas e a sala de aula. Sem essa mediação, as leis — por mais importantes que sejam — correm o risco de ficar apenas no papel, sem se tornarem prática transformadora. O professor e o gestor têm em suas mãos a possibilidade de transformar a escola em um espaço de acolhimento ou, infelizmente, em um ambiente que perpetua exclusões. Por isso, a formação não pode ser apenas informativa, restrita ao conhecimento das Leis 10.639 e 11.645. Ela precisa ser um processo de descolonização das mentalidades e das práticas pedagógicas. Isso significa preparar profissionais para reconhecer o racismo estrutural, entendê-lo como um sistema que atravessa instituições e relações sociais, e, a partir daí, combatê-lo no currículo, nas interações cotidianas e na dinâmica escolar.
Uma formação antirracista também ensina a perceber a diversidade não como algo “a ser incluído” em datas comemorativas, mas como parte estruturante da sociedade. É formar para valorizar as histórias, culturas e saberes de povos negros, quilombolas e indígenas, integrando-os de maneira digna e orgânica no cotidiano escolar. Além disso, é preciso oferecer subsídios pedagógicos para ensinar temas complexos, como escravidão, resistência e contribuições africanas e afro-brasileiras, de modo crítico e engajador. Essa formação deve estimular o diálogo, mostrando que a educação se faz em parceria com famílias, lideranças comunitárias e movimentos sociais. O conhecimento acadêmico e o saber da comunidade precisam caminhar juntos. Quando bem formados, professores e gestores se tornam verdadeiros agentes de mudança: capazes de desconstruir preconceitos, semear o respeito e mostrar a cada estudante que a história do Brasil é feita por muitos agentes sociais, em toda a sua pluralidade e contradições. É por isso que digo: não há educação plural e antirracista possível sem investimento sólido e contínuo na formação inicial e continuada de quem está na linha de frente — os profissionais da educação que estão na escola todos os dias.
“O educador é a ponte viva entre as políticas públicas e a sala de aula.”
C&C – Como a pesquisa acadêmica pode contribuir para fortalecer políticas educacionais que promovam a equidade racial no Brasil?
WNBC – A pesquisa acadêmica é fundamental para subsidiar políticas educacionais voltadas à equidade racial. Eu sempre digo que ela é um dos caminhos mais consistentes para transformar denúncia em dado, e dado em ação política. Em primeiro lugar, a pesquisa nos permite produzir informações confiáveis. Muitas vezes, a desigualdade racial aparece de forma difusa, quase invisível. Quando olhamos para taxas de alfabetização, evasão escolar, acesso à universidade ou mercado de trabalho a partir do recorte de cor e raça, conseguimos enxergar com clareza onde estão as desigualdades e, assim, orientar políticas públicas mais justas.
Outra contribuição essencial é o diálogo com a legislação e com o currículo. Pesquisar a aplicação de leis como a 10.639/2003 e a 11.645/2008, ou analisar documentos como a BNCC e o Novo Ensino Médio, nos ajuda a identificar avanços, lacunas e desafios. Sem esse olhar crítico, corremos o risco de ter leis bem-intencionadas que não se traduzem em prática. A pesquisa também tem papel de avaliar políticas já existentes. Quando olhamos, por exemplo, para as cotas raciais, o PROUNI ou o FIES, conseguimos medir até que ponto essas políticas têm garantido de fato o acesso e a permanência da população negra no Ensino Superior. Esse acompanhamento é indispensável para corrigir rumos e consolidar direitos.
Mas talvez o aspecto que mais me mobilize seja a capacidade da pesquisa de dialogar com a sociedade. Ela não pode ficar restrita aos muros da universidade. Quando os resultados são compartilhados em rodas de conversa, entrevistas, redes sociais, lives, ou em parceria com movimentos sociais e gestores públicos, a pesquisa ganha vida e contribui diretamente para a transformação. Por isso, acredito que nosso compromisso, enquanto pesquisadores, é duplo: com a ciência e com a sociedade. Afinal, é a sociedade que financia nossas investigações, e é a ela que devemos devolver respostas. No Brasil, uma das mais urgentes é o enfrentamento da desigualdade racial, que não é um problema lateral, mas central para a democracia.
C&C – Que impacto o trabalho do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAB/UFPA) tem tido na formação de docentes e na promoção da diversidade?
WNBC – O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais da UFPA, conhecido como GERA, tem quase duas décadas de atuação e, nesse tempo, consolidou um compromisso que é ao mesmo tempo acadêmico, social e político. Nossa missão sempre foi articular estudos, pesquisas e ações que fortaleçam a formação docente e promovam a equidade racial no Brasil. Na prática, isso significa produzir conhecimento sobre as relações étnico-raciais e seus impactos na educação, mas também garantir que esses resultados cheguem às escolas e comunidades, envolvendo-as no processo da pesquisa. Muitos dos livros e publicações do grupo, por exemplo, são doados a bibliotecas de escolas públicas de Belém, apoiando professores em sua prática cotidiana.
Outro aspecto importante é a promoção de eventos em diferentes escalas — regionais, nacionais e internacionais. Neles, socializamos pesquisas do GERA e de outros pesquisadores, sempre abrindo inscrições gratuitas para estudantes, escolas parceiras e professores da Educação Básica. Acreditamos que a produção acadêmica só tem sentido quando dialoga diretamente com quem está na linha de frente da educação. O GERA também tem uma marca muito forte na formação de profissionais. Em 2018, por exemplo, ofertamos uma especialização voltada a professores e agentes educacionais. Os trabalhos produzidos abordaram desde o ensino de História até a formação continuada, sempre com foco na educação das relações étnico-raciais. Foi uma experiência coletiva exitosa, porque mostrou o quanto, quando apoiados, os profissionais se sentem mais preparados para enfrentar o racismo dentro da escola e mais valorizados em seu conhecimento.
Em resumo, o impacto do GERA está justamente nessa dupla dimensão: na produção de conhecimento e na sua devolutiva social. Nosso compromisso não é apenas com a pesquisa pela pesquisa, mas com a construção de uma educação mais plural, antirracista e comprometida com a justiça social. É uma posição acadêmica, sim, mas também política — e é isso que nos move.
“Vocês não são apenas parte da academia — vocês são a transformação que ela precisa viver.”
C&C – Que mensagem a senhora gostaria de deixar para as jovens cientistas e educadoras negras que estão começando suas trajetórias acadêmicas?
WNBC – Às jovens cientistas e educadoras negras que estão iniciando suas trajetórias, eu diria, antes de tudo, que a presença de vocês na academia não é apenas possível — ela é necessária e urgente. Esses espaços, que historicamente nos foram negados, precisam ser ocupados por nossas vozes, pesquisas e perspectivas. Cada uma de vocês carrega consigo não só um sonho individual, mas o legado de uma história coletiva que insiste em existir e resistir. Quero que saibam também que vocês não estão sozinhas. Ainda que sejamos minoria, há mulheres negras que abriram caminhos, que produziram ciência, que desafiaram estigmas e que hoje podem servir de referência. Há um legado construído com coragem e sacrifício, que prova ser possível subverter os lugares que tentaram nos impor pela cor da pele, pelo gênero, pela classe social ou pela orientação sexual. Esse legado é de vocês também.
O meu desejo é que construam suas trajetórias com ética, rigor e compromisso, mas também com alegria e esperança. Que não percam de vista que fazer ciência, para nós, é também um ato político, um gesto de luta por justiça social. O mundo acadêmico precisa das perguntas e das respostas que só vocês podem oferecer. E, por fim, quero dizer: sigam acreditando em si mesmas, mesmo quando tentarem convencê-las do contrário. O caminho pode ser árduo, mas cada passo de vocês é uma semente plantada para que outras jovens negras possam caminhar com menos pedras no futuro. Vocês não são apenas parte da academia — vocês são a transformação que ela precisa viver.



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Uma contribuição significativa para o debate. A professora Wilma tece uma análise pertinente que certamente enriquecerá todos os leitores e todas as leitoras.