Opinião
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Amazônia, coração político do planeta

Enquanto a COP-30 mobiliza o mundo em torno da Amazônia como solução climática, a região enfrenta desafios internos urgentes — da defesa dos povos tradicionais ao combate ao crime ambiental.

 

A floresta amazônica e seus serviços ambientais motivam, em larga medida, a realização da COP-30 em Belém do Pará. Em meio a debates intensos e ásperos sobre o aquecimento global, o esgotamento de recursos naturais e o financiamento da transição energética, há o interesse em garantir que o desmatamento na Amazônia cesse, que as áreas degradadas sejam recompostas, que o bioma siga capturando carbono da atmosfera e contribuindo para a regulação do clima no planeta, e que os “rios voadores” continuem levando para o sul do continente a água necessária ao seu equilíbrio hídrico. Chamemos a isso de agenda global para a Amazônia — inegavelmente desejável e possível. Mas viabilizá-la requer, preliminarmente, soluções para uma agenda emergencial, possivelmente diferente e adicional à que prevalecerá nos debates e pactuações entre as nações.

Essa agenda emergencial inclui a proteção dos povos indígenas e das comunidades amazônicas tradicionais (quilombolas, ribeirinhos e extrativistas); a contenção da fronteira agrícola na região (e da expansão rodoviária por ela estimulada); o combate ao crime organizado — responsável pela mineração ilegal, tráfico de drogas, exploração irregular de madeira e biopirataria —; o enfrentamento consequente dos crimes e danos ambientais produzidos pela mineração e outros empreendimentos legalizados; a reavaliação, com participação social, dos projetos energéticos baseados no represamento dos rios amazônicos; a solução de conflitos fundiários desencadeados pela grilagem; e o fim das violações de direitos humanos e territoriais, entre muitos outros desafios. (Figura 1)


Figura 1. A fronteira agrícola avança sobre a floresta, levando consigo desmatamento, grilagem e conflitos fundiários.
(Foto: DNIT. Divulgação)

 

Os temas da agenda emergencial são numerosos e as realidades correspondentes, muito complexas. Mas renunciar ao esforço para equacioná-los resultará no fracasso antecipado de qualquer pretensão à conservação da floresta e à garantia de seus serviços ecossistêmicos. E o tempo para agir é cada vez mais curto. A estimativa de que, em duas décadas e meia, poderemos ter chegado ao ponto de não retorno para a floresta amazônica é grave e, pior, talvez otimista, dada a velocidade das transformações em curso. É preciso ter em conta que o cenário hoje encontrado na Amazônia — de reiteradas violências, crimes e degradação socioambiental — não se formou ao acaso: ele é fruto da ação planejada de grupos econômicos poderosos, que continuam atuando com desenvoltura na região, inclusive estimulados pela presença limitada das instituições do Estado no extenso território.

Há elementos favoráveis à execução de uma agenda alinhada com a expectativa de desenvolvimento sustentável, inclusivo e participativo na Amazônia, que concorrem com forças que, até aqui, acumularam muito mais poder na região. Há, atualmente, uma organização e uma atuação mais avançadas das comunidades tradicionais e de entes sociais comprometidos com a promoção de direitos e a conservação do bioma — incluindo grupos que conhecem há séculos a floresta e sabem como manejá-la sem comprometê-la. Tais coletivos podem compartilhar com os formuladores de políticas públicas informações de enorme valor acerca dos potenciais impactos dos projetos pensados para o território amazônico. Esses sujeitos de direitos precisam ser ouvidos de forma efetivamente interessada e consequente.

 

“Sem enfrentar a agenda emergencial, a Amazônia corre o risco de não existir para cumprir a agenda global.”

 

Há, na Amazônia, uma rede de universidades públicas multicampi, com expressiva capilaridade e extraordinária capacidade de aliar a produção de conhecimento ao desenvolvimento de projetos em parceria com governos e organizações da sociedade. Muitas cooperações desse tipo já se encontram em andamento — no enfrentamento de questões sociais, ambientais, econômicas, fundiárias etc. — e há estrutura para muito mais. Essas universidades podem ser grandes plataformas para políticas públicas na região. No interior dessas instituições encontram-se os responsáveis pela maior parte da ciência produzida sobre a Amazônia no mundo. Há pesquisadores e instituições de vários continentes pesquisando na região, mas as universidades amazônicas lideram essa produção, ao lado dos institutos de pesquisa também sediados na Amazônia. Os grupos de pesquisa amazônicos vivem o cotidiano das populações locais e estão aptos a entregar informação qualificada sobre essa realidade. Também são responsáveis por experiências ricas de integração do fazer científico com o desenvolvimento de soluções para os problemas das comunidades, ao mesmo tempo em que contribuem para uma consciência ambiental mais ampla.

As alternativas econômicas para os povos tradicionais passam principalmente pela bioeconomia, desde sempre presente na vida dessas comunidades (não se trata, portanto, de uma novidade). Arranjos produtivos locais podem ser fortalecidos de modo consistente com a perspectiva de conservação e proteção da floresta e das comunidades, integrando conhecimentos tradicionais com a pesquisa científica e tecnológica. Isso significa trabalhar com a lógica da sociobioeconomia, evitando as pressões para transformar em commodities internacionais os produtos da sociobiodiversidade amazônica e em fornecedoras de matéria-prima para a grande indústria as comunidades locais — transformações que geram perda de biodiversidade e desorganização de sistemas de vida tradicionais. Há muitas boas experiências de estímulo à sociobioeconomia em curso, que podem servir de referência para programas de maior alcance. (Figura 2)


Figura 2. Os saberes ancestrais dos povos amazônicos mostram que é possível viver da floresta sem destruí-la.
(Foto: Christian Braga / WWF-Brasil. Reprodução)

 

Sobre os povos tradicionais, é preciso acrescentar que a sua permanência nos territórios que ocupam há séculos é um requisito para a manutenção da floresta. Nas áreas da Amazônia onde foram alvo de deslocamentos compulsórios, a floresta deu lugar a uma paisagem de desmatamento, pastagens, monoculturas e perda de biodiversidade. As atividades econômicas que ocuparam esses espaços — em geral ligadas direta ou indiretamente à mineração, ao agronegócio e ao comércio de madeira — não apenas devastaram territórios como também resultaram em riquezas apropriadas por poucos, ao custo do agravamento de problemas sociais e ambientais. Em alguns casos, como o abastecimento energético de outras regiões com as barragens nos rios amazônicos e a geração de divisas internacionais com a exportação de minérios e grãos, esses ganhos são tratados como de interesse para o Estado brasileiro. Trata-se, no entanto, de resultados incomparavelmente menos importantes do que a conservação da floresta — incompatíveis com os processos frágeis e complexos dos ecossistemas amazônicos, sem os quais terão vida curta.

Encontram-se, na estrutura do Estado brasileiro, instituições cujo corpo técnico inclui profissionais familiarizados com a realidade amazônica, com capacidade de reconhecer a inteligência instalada na região e com valiosa capacidade de diálogo com atores regionais. Esses recursos humanos são responsáveis por ações importantes — ainda que insuficientes — do Estado brasileiro voltadas à agenda emergencial amazônica. Integrar essas ações e associá-las ao trabalho dos atores regionais pode resultar em um salto de qualidade no esforço nacional para vencer o desafio amazônico.

 

“A sociobioeconomia tradicional oferece caminhos sustentáveis que alguns setores dos governos e da sociedade ainda insistem em ignorar.”

 

Como coração político do planeta na temporada da COP-30, a Amazônia necessita — e merece — ser ouvida na complexidade de seus desafios, não apenas no valor de suas potenciais contribuições para o equilíbrio climático. Inclusive porque tais contribuições inexistirão em um futuro muito próximo, caso sua agenda emergencial permaneça sem a atenção devida. As soluções necessárias são tão desafiadoras quanto o estágio de esfarelamento do território e do tecido social nas comunidades amazônicas. O contraste entre as exuberâncias naturais e os desastres socioambientais produzidos por intervenções que alteram a paisagem, a biodiversidade e os sistemas culturais tradicionais tende a desaparecer por esgotamento dos primeiros, se continuarem tolerados — quando não estimulados — os processos de transformação em curso.

Até certo ponto, os problemas da agenda amazônica emergencial são produto da conversão da Amazônia em nova fronteira do capitalismo nacional e internacional. Daí as pressões para instituir novas ocupações do solo, substituir a tradicional sociobioeconomia por uma bioeconomia de commodities e utilizar o potencial hídrico como fonte de energia para polos industriais de outras regiões. Há, adicionalmente, condições que se originaram de uma visão fragmentada de uma realidade que é muito complexa — como nas políticas que estimularam a migração para o território amazônico em décadas passadas. A Amazônia, no entanto, oferece ao mundo lições muito concretas acerca da ilusão que representa a aspiração de salvar o planeta ignorando as circunstâncias em que interesses políticos e econômicos de poucos operam para suprimir as condições de vida de muitos.

 

“Ouvir a Amazônia é ouvir os povos que nela vivem — e deles depende o futuro da floresta e do planeta.”

 

Se a agenda global para a Amazônia não dá conta de todos os complexos problemas da agenda emergencial, ela, no entanto, institui uma oportunidade única para que se inaugure um olhar mais atento à região. O que move a agenda global é uma inédita e importante consciência ecológica e climática, que coloca a Amazônia em primeiro plano nos debates sobre o futuro do planeta — ainda que com uma visão parcial da realidade deste território. Expandir essa visão, compreendendo a interconexão das duas agendas, será positivo para todas as pessoas efetivamente interessadas em construir um novo horizonte de vida sustentável, com inclusão e justiça social.

 

Agradecimentos

A preparação deste artigo foi apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq.

 

Capa. Amazônia em duas agendas: entre o futuro do planeta e a urgência do presente
(Foto: WWF-Brasil / Adriano Gambarini. Reprodução)

 

Ciência & Cultura © 2022 by SBPC is licensed under CC BY-SA 4.0  
Emmanuel Zagury Tourinho

Emmanuel Zagury Tourinho

Emmanuel Zagury Tourinho é professor titular da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento. É membro do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Emmanuel Zagury Tourinho é professor titular da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento. É membro do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
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