A Bioarte dissolve fronteiras entre arte e ciência, utiliza organismos vivos como matéria-prima e provoca reflexões éticas e estéticas sobre a própria natureza da vida.
No cruzamento entre biotecnologia e expressão estética, nasce um território fascinante conhecido como Bioarte. Nessa forma de criação, a vida deixa de ser apenas tema ou inspiração: torna-se meio, ferramenta e sujeito da obra. Em lugar de tinta e argila, os artistas trabalham com células, bactérias, tecidos, DNA e fungos, explorando os limites entre o natural e o artificial, entre o laboratório e o ateliê.
A Bioarte emergiu nas últimas décadas, impulsionada pelos avanços da engenharia genética e da biotecnologia. Seus praticantes se movem em territórios híbridos, onde a experimentação artística depende de protocolos científicos e o rigor da pesquisa biológica se combina à liberdade criativa. “Manipular a vida tornou-se uma nova forma de criação estética”, resume o artista brasileiro Eduardo Kac, pioneiro do campo.
Do pincel à pipeta
A principal característica da Bioarte é o uso de organismos vivos como matéria expressiva. Isso pode significar pintar com bactérias, criar esculturas de tecidos vivos ou desenvolver organismos geneticamente modificados que desafiam nossos conceitos de natureza e identidade. Em vez de um ateliê tradicional, o artista trabalha em um laboratório de biologia, cercado por reagentes, incubadoras e microscópios. A pipeta substitui o pincel; o meio de cultura, a tela.
“O pincel do bioartista é uma pipeta, e sua tela, uma placa de Petri.”
As técnicas da biotecnologia — clonagem, cultura celular, edição genética — são aqui reinterpretadas como linguagem artística. O resultado são obras que, muitas vezes, estão em constante transformação, crescendo, decompondo-se ou reagindo ao ambiente. Cada projeto torna-se um organismo que vive, interage e morre.
A fronteira entre arte e ciência
Mais do que produzir impacto visual, a Bioarte busca provocar reflexão. Ao manipular a vida, esses artistas questionam a ética da biotecnologia, os limites da criação humana e o papel da ciência na sociedade. É arte, mas também filosofia aplicada. Como explica a artista portuguesa Marta de Menezes, “o que torna o meu trabalho arte não é o tipo de material que uso, e sim as questões que levanto com ele”.
Eduardo Kac é autor de um dos experimentos mais icônicos do campo: GFP Bunny (2000), um coelho transgênico fluorescente, resultado da introdução de um gene de água-viva que faz o animal brilhar sob luz azul. Batizado de Alba, o coelho tornou-se símbolo da arte transgênica e levantou intensos debates éticos sobre a manipulação da vida. “Meu objetivo era criar um ser vivo que nunca existiu na natureza”, explicou o artista.
Outro trabalho seu, Genesis, transformou uma passagem bíblica em sequência de DNA sintético, inserida em bactérias — uma fusão entre fé, ciência e arte que questiona o poder humano de “reescrever” a vida.

Figura 1. Eduardo Kac, “Genesis”. Divulgação.
Bioarte e divulgação científica
A Bioarte tem um papel crescente na divulgação científica e na educação pública. Ao trazer processos de laboratório para o campo artístico, ela traduz de forma sensível e visual temas complexos da biologia contemporânea, como edição genética, inteligência artificial e simbiose. Essa arte viva abre espaço para o diálogo entre cientistas e o público, tornando acessíveis debates que normalmente circulam apenas em ambientes acadêmicos.
Museus, planetários e jardins botânicos vêm se abrindo a essas experiências híbridas. O coletivo ArtBio, por exemplo, organiza desde 2014 a Mostra de Arte Científica Brasileira, reunindo fotografias e experimentos inspirados em microscopia.
Bioarte no Brasil
No Brasil, a Bioarte se consolida como um campo fértil de experimentação. O artista Cesar Baio, professor da Unicamp, é um dos expoentes dessa cena. Em parceria com o coletivo norte-americano The League of Imaginary Scientists, criou a instalação Culturas degenerativas, na qual fungos da espécie Physarum polycephalum “devoram” livros clássicos sobre o domínio humano da natureza — e, simultaneamente, corrompem seus equivalentes digitais, alimentando um algoritmo de inteligência artificial. A obra reflete sobre os ciclos de degradação, consumo e regeneração no mundo físico e virtual.
“A Bioarte não celebra a biotecnologia — ela a questiona.”
Outros nomes se destacam. O artista Guto Nóbrega, coordenador do Núcleo de Arte e Novos Organismos (Nano) da UFRJ, desenvolveu o projeto BOT_anic, no qual uma planta jiboia controla o movimento de um pequeno robô a partir de sinais elétricos captados em suas folhas. Já o Laboratório de Pesquisa em Arte, Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), criado por Baio em 2015, articula pesquisadores de filosofia, biologia e computação para explorar novas formas de expressão entre espécies e sistemas.

Figura 2. Guto Nóbrega, “BOT_anic”. Divulgação.
Um estudo publicado na Ciência & Cultura em 2018 identificou mais de 130 pesquisadores brasileiros atuando no campo da arteciência — muitos deles explorando dimensões bioartísticas. A maioria está concentrada no Sudeste, mas o mapa do campo se expande rapidamente, com iniciativas surgindo em diferentes regiões do país.
Um futuro orgânico e ético
Ao unir arte e ciência, a Bioarte propõe uma nova forma de pensar a vida — não como objeto de domínio humano, mas como parceira de criação. Suas obras não oferecem respostas fáceis: levantam dilemas sobre a manipulação genética, a sensibilidade das plantas, a convivência entre máquinas e organismos. E, ao fazer isso, aproximam o público de discussões que moldam o futuro da biotecnologia.
Capa. Cesar Baio, “Ser hifanizado”. Divulgação


