Como Roberto Burle Marx transformou a botânica brasileira em paisagem, arte e identidade nacional
No cruzamento entre a arte, a ciência e a natureza tropical, emergiu Roberto Burle Marx (1909–1994), figura seminal no paisagismo moderno brasileiro. Reconhecido mundialmente como um dos principais paisagistas do século XX, ele transformou o jardim em manifestação cultural e política, rompendo com convenções estéticas e propondo uma nova relação entre o homem e o meio ambiente. Mais do que jardineiro, como por vezes se definia, Burle Marx foi artista plástico, cantor de ópera, botânico autodidata e defensor da flora brasileira.
Uma vida entre orquídeas e pincéis
A formação artística de Burle Marx começou na infância, incentivada por uma família envolvida com as artes. Mas foi durante uma temporada em Berlim, no final dos anos 1920, que o jovem Roberto teve uma epifania. Ao visitar o Jardim Botânico de Dahlem, se encantou com a flora tropical brasileira ali cultivada. A partir dali, compreendeu que o Brasil não precisava importar a beleza de outras nações: ela já estava enraizada em sua própria terra. (Figura 1)

Figura 1. Roberto Burle Marx
(Foto: Marcio Scavone. Reprodução)
De volta ao Brasil, entrou para a Escola Nacional de Belas Artes e, apadrinhado por Lúcio Costa, fez seu primeiro jardim em Copacabana. A consagração viria poucos anos depois, com o projeto paisagístico do então Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, em parceria com Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Ali nascia o “jardim tropical moderno”, também chamado de jardim brasileiro.
A ciência a serviço da arte
Diferente de muitos paisagistas de sua época, Burle Marx se dedicou intensamente ao estudo da flora nacional. Realizou dezenas de expedições botânicas por biomas como a Amazônia, o Cerrado e a Caatinga, coletando espécies, muitas ainda desconhecidas da ciência, e introduzindo-as em seus projetos. Estimativas apontam que ele descobriu cerca de 50 novas espécies, algumas das quais foram nomeadas em sua homenagem, como o Orthophytum burle-marxii.
“Se eu pretendesse fazer uma obra perfeita, não saberia por onde começar. Erros podem ser corrigidos. Tenho medo é da fórmula. O importante é ter curiosidade.” — Roberto Burle Marx.”
No paisagismo, seu olhar era tão botânico quanto estético. Cada planta era escolhida não apenas por sua beleza, mas por sua adaptação ao local, por sua textura, volume, cor e papel ecológico. Seus jardins eram projetos de vida, planejados com visão holística, onde não havia elemento isolado, mas sim um sistema vivo em constante diálogo.
O sítio-laboratório
A dimensão mais concreta da relação entre Burle Marx e a botânica está no Sítio Roberto Burle Marx, em Barra de Guaratiba, zona oeste do Rio de Janeiro. Adquirido em 1949, o espaço de 365 mil m² tornou-se sua residência, ateliê e campo experimental. Ali, aclimatava espécies, cultivava mudas, desenhava jardins e abrigava uma coleção impressionante de mais de 3.500 espécies tropicais e subtropicais, incluindo representantes raros de bromélias, palmeiras, helicônias, aráceas e cicas.
Em 1985, o Sítio foi doado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tornando-se centro de referência em paisagismo e botânica. Hoje, além de jardim botânico tombado e bem cultural, está na Lista Indicativa da Unesco como possível Patrimônio Mundial. No local, também se conservam obras plásticas do artista, objetos pessoais e uma vasta coleção de arte popular brasileira.
Um paisagismo de pertencimento
Burle Marx rompeu com a tradição europeia e propôs um paisagismo autenticamente brasileiro. Seus projetos para praças, parques, jardins residenciais e edifícios integram-se às condições climáticas, topográficas e culturais de cada região. Ele concebeu o jardim como espaço de experiência coletiva, não como luxo privado. “Não quero fazer jardins apenas para milionários. Gostaria de fazer jardins que o povo pudesse participar”, afirmou em entrevista. (Figura 2)

Figura 2. Praça do Entroncamento, projetada por Burle Marx.
(Foto: Lais Castro. Reprodução)
Foi também precursor em sustentabilidade: utilizava materiais de demolição em calçamentos e estruturas, fazia manejo ecológico da vegetação e combatia o desmatamento, que tanto o indignava durante suas viagens pelo Brasil. Em suas palavras: “A natureza é como algo despenteado, e por isso a arrumo com sutil experiência”.
Legado vivo
Mais do que jardins, Burle Marx deixou um pensamento: o paisagismo como linguagem que une ciência e arte, ecologia e estética, tradição e invenção. Seu legado vive não apenas nas formas curvas dos calçadões de Copacabana ou nas exuberantes praças de Recife e Belo Horizonte, mas na forma como olhamos a natureza como expressão cultural.
“Mais do que jardins, Burle Marx plantou ideias: um paisagismo que une ciência, arte e pertencimento, cultivado no solo fértil da biodiversidade brasileira.”
Hoje, enquanto o mundo debate mudanças climáticas, biodiversidade e o papel das cidades, revisitar Burle Marx é mais do que homenagear um mestre: é reaprender com um visionário que viu nas plantas nativas não apenas matéria vegetal, mas identidade, beleza e resistência.
Capa. Parque Burle Marx (SP)
(Foto: Divulgação)


